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O Martelo dos Bobos

08 fev 2018 às 11:12

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O historiador e escritor português Alexandre Herculano (1810-1877), em seu livro O Bobo, deleita-nos com algumas curiosidades sobre o truão, como as que agora se fazem seguir. "[...] E não era lá nenhum grande homem: era um vulto de pouco mais de quatro pés 1 de altura; feio, barrigudo, imundo, e insolente como um vilão. Chamava-se de seu nome Dom Bibas. Oblato 2 do mosteiro de D. Muma, quando chegou à idade, que se diz da razão, por ser das grandes loucuras, achou que não era feito para ele o remanso da vida monástica [...] O leitor que não conhecesse por dentro e por fora, a vida da idade Média, riria da pequice (tolice) com que atribuímos valor político ao bobo [...] O bobo, que habitava nos paços dos reis e barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espírito do criminoso no potro 3 imaterial do vilipêndio [...] O bufão tomava ao acaso o temor que infundia o príncipe, o barão ou o ilustre cavaleiro, e tocando-os com a ponta da sua palheta (taco), ou fazendo-os voltear nos tintinábulos (sinetas) do seu adufe (pandeiro), convertia esse temor e respeito numa coisa truanesca e ridícula." (HERCULANO, 1967, pp. 23-26).

O dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) confere ao maninelo ("idiota") da corte papel principal em sua obra Rei Lear. "[...] O Bobo para o Rei Lear: ‘A verdade é uma cadela que se obriga a entrar no canil... Chicote em seu lombo! Mas a cadelinha (hipocrisia), Lady, essa tem licença de ficar à lareira e de incomodar o nariz dos patrões... [...] O Bobo para o conde de Kent: ‘Os senhores e os grandes não querem permitir-me que eu seja inteiramente tolo; se eu tivesse o monopólio da asneira, pretenderiam obter uma parte para si; e as senhoras também. Elas não querem que eu guarde para mim só a tolice e apanham-me as migalhas’ [...] O Bobo para o Rei: ‘Pergunto-me a mim mesmo que parentesco existe entre ti e tuas filhas; elas ameaçam-me com chicotadas se lhes digo a verdade; tu queres mandar açoitar-me se digo mentiras; e mesmo às vezes sou vergastado porque não digo coisa alguma. Preferia ser qualquer outra coisa a ser bobo...’ [...] O Bobo ainda para o Rei: ‘Sabes por que nós temos o nariz no meio da cara? Para ter os olhos abertos de ambos os lados do nariz e assim o homem possa ver o que não puder cheirar.’" (SHAKESPEARE, 1949, pp. 166, 168, 169 e 177).

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O historiador francês Georges Minois, na densa obra História do Riso e do Escárnio, declina interessantíssimos aspectos dos bufões – ou de tudo aquilo que lhes diz respeito - da Antiga Grécia e sua conturbada relação com os meios intelectuais e com a alta sociedade da época. "A bufonaria nas Antestérias, os indivíduos, em cima de carroças, caçoavam e provocavam os passantes; quando a procissão dos mistérios de Elêusis passava a ponte do rio Kéfisos, uma prostituta velada gritava graçolas para cidadãos conhecidos, chamando-os pelo nome [...] O tirano de Siracusa, Agatocles, não desdenhava de ser, ele próprio, o bufão, mas este, em geral, era profissional, e alguns se tornaram famosos, como Eudikos, no século IV a.C., particularmente apreciado por suas imitações de lutadores [...] Existia mesmo em Atenas um clube de bufões, os Sessenta, atestado no século IV a.C.; a reunião era no santuário de Héracles (em latim, Hércules), na Diomeia, nos arredores da cidade. Seus membros pertenciam à alta sociedade, como Calimedon, afetado por estrabismo divergente. A fama de boa companhia desses palhaços amadores era considerável [...] Filipe da Macedônia (pai de Alexandre O Grande) os recompensava com um talento [...] Demócrito de Abdera era conhecido como o filósofo hilário, talvez fosse porque ele zombava da estupidez de seus compatriotas [...] Condenação do riso grosseiro e uso do riso sutil: eis duas das lições de Xenofonte, que dá prioridade à ironia para um objetivo moral e intelectual. Zombar dos vícios e dos erros para atingir a virtude e o conhecimento." (MINOIS, 2003, pp. 55-60).
Minois segue a nos brindar com a postura de Aristóteles acerca da superioridade do sorriso discreto em uso conjugado com uma sutil ironia: "A ironia convém melhor ao homem livre que à bufonaria, já que o homem livre diz a pilhéria para seu próprio prazer, ao passo que o bufão a diz para o prazer do outro".(MINOIS, 2003, p. 60).

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O sapientíssimo filósofo macedônio ensina-nos que devemos ser comedidos ao rir, senão podemos vestir a máscara da estupidez mais rasteira: "[...] Aqueles que levam a jocosidade ao excesso são considerados bufões vulgares; são os que procuram provocar o riso a qualquer preço e, na sua ânsia de fazer rir, não se preocupam com a inconveniência do que dizem nem em evitar o mal-estar daqueles que elegem como objetos de seus chistes..." (ARISTÓTELES, 2001, p. 96). Rir é necessário, é humano, é natural, mas, se deve agir com moderação e muito muito zelo para que tal lépido ato não se transforme em um mal terrível ou em uma arma inoportuna causadora de conflitos e discórdias.

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O ditado latino: Risus abundat in ore stultorum ("o riso é abundante na boca dos tolos"), alerta para o cuidado que as pessoas precisam tomar em relação ao riso, "afirmando que o homem desprezível e de mau gosto ri em qualquer ocasião" (TOSI, 2000, p. 187). Soltar risadas é salutar, faz bem para o espírito, alivia as tensões e angústias; às vezes, ajuda a suportar até os momentos mais amargos do destino humano. Assim como os bobos da corte, de todas as épocas, todo o ser humano, ainda hoje, não passa de um cruel chocarreiro, ou seja, de um ser "que não resiste à vontade de gracejar, e para provocar o riso não poupa nem a si nem aos outros" (ARISTÓTELES, 2001, p. 97). O gracejo - em seus infinitos graus de malevolência intencional ou não – está extraordinariamente imbuído no caráter do homo sapiens, o que poderia levar à criação de um novo (e sexto) sentido: o da hilaridade ou da vontade de rir. O que se lastima profunda e incompreensivelmente, contudo, é a vontade de magoar que sempre acompanha essa alegria. Todos nós somos, ao mesmo tempo, construtores ("fazedores") e espectadores de grotescos bobos da corte, ou roubando deles a implacável função de acusadores ("apontadores") da estupidez humana, ou também lhes servindo de bigorna - ou de prego, fica a gosto - de suas justiceiras marteladas.


REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2001.
HERCULANO, Alexandre. O Bôbo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
TOSI, Renzo. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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