Quem vê as fotos da apresentação de ''Diários de Motocicleta'', feitas no festival de cinema de Cannes, invariavelmente se depara com a figura carismática de Alberto Granado que, aos 82 anos, percorre com o diretor Walter Salles o circuito de lançamento do filme.
Amigo de Che Guevara durante toda a vida, Granado foi seu companheiro de viagem pela América do Sul, em 1952, pilotando La Poderosa, uma Norton de 500 cilindradas, de fabricação inglesa, que passou por inúmeros consertos durante a jornada de 20 mil quilômetros empreendida pelos jovens aventureiros investidos do espírito ''on the road'' com forte sotaque latino.
A felicidade de se deparar com o filme é reforçada pela sua consagração em Cannes, onde foi aplaudido calorosamente pela imprensa e pelo público do festival francês.
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O filme é baseado no livro ''De Moto pela América do Sul - Diário de Viagem de Che Guevara'', relançado pela Sá Editora e que traz um relato coloquial da aventura compreendida como a ''iniciação revolucionária'' de um mito.
No prefácio, Ernesto Guevara Lynch, o pai do Che, conta como recebeu a notícia de que o filho, um jovem estudante de Medicina de 23 anos, havia decidido conhecer o mundo, saindo da Argentina para atravessar o Chile, o Peru, a Colômbia e a Venezuela.
No texto, ele reconhece na iniciativa a busca que acabaria forjando o guerrilheiro inconformado com a situação do povo latino-americano: ''Ele sabia que para conhecer realmente a necessidade dos pobres tinha que viajar pelo mundo não como turista, parando aqui e ali para tirar belas fotos e apreciar a paisagem, mas da maneira que ele fez, compartilhando o sofrimento humano embutido em cada curva da estrada e procurando as causas daquela miséria'', reflete.
No diário do Che cruzam-se as experiências que determinaram a tomada de consciência social e ideológica com passagens que poderiam figurar nas memórias de qualquer jovem viajante.
As aventuras de dormir ao relento ou consertar La Poderosa a cada solavanco na estrada são pródigas em humor fazendo o leitor esquecer que aquele relato contém o embrião de um mito, encontrando antes de tudo um ser humano divertido e desencanado.
A graça fica por conta das comparações que o Che estabelece com moto, descrevendo seu ''ronco asmático'' ao subir ladeiras ou amarrando com arame as peças e parafusos que se soltavam dando a ele e Granado um trabalhão para voltar à estrada.
Para contar essa história, Walter Salles e a equipe de filmagens percorreram também 20 mil quilômetros através da América Latina. Ao encontrar Granado em Cuba, Salles ouviu do velho parceiro do Che um relato decisivo sobre o estágio de alienação confrontado pelos dois amigos: ''Em 1952, nós conhecíamos mais sobre os etruscos, os gregos e romanos do que sobre os incas e outros povos da América''.
O reconhecimento desta deficiência cultural soma-se no livro com o impacto causado pela pobreza e as doenças encontradas pelo caminho. A parada numa colônia de leprosos em San Pablo, no Peru, dá a dimensão da preocupação humanitária dos dois jovens médicos que queriam imprimir à vida uma doação maior do que ficar à espera de clientes.
Na volta desta viagem, Ernesto Che Guevara já não se reconhece mais no mesmo papel do homem que partiu sem grandes compromissos. Ele diz: ''A pessoa que está agora organizando e polindo estas mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes. Este vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que me dei conta''.
A passagem evoca o nascimento do revolucionário que morreria acuado em 8 de outubro de 1967 na Bolívia. O guerrilheiro percorreria até o fim os caminhos da América pobre, carente de recursos e por que não? de mitos.
Serviço:
'De Moto Pela América do Sul Diário de Viagem de Ernesto Che Guevara'
Sá Editora, 192 páginas, R$ 29,90