A biografia atualizada de Chico Buarque, Para Seguir Minha Jornada, nos conduz por uma trilha que pulsa ao ritmo de uma nação em transe. Regina Zappa, cuidadosa e perspicaz, costura o tempo com a precisão de um alfaiate que entende as linhas e os traços ocultos sob o tecido.
Desde 2011, Zappa acompanhou de perto os passos de Chico, cada canção, cada livro, cada silenciamento. Agora, numa adição meticulosa, traz os anos mais recentes de sua vida à tona, como quem revela um segredo ou abre uma janela para um novo cenário.
Chico, aos 80 anos, não é um monumento parado; ele dança, reluz, e é nessa eterna metamorfose que o livro nos enreda.
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Para quem folheou a edição de 2011, esse reencontro é um abraço de saudade. Aquele primeiro volume já era uma crônica íntima e política, onde a vida do artista refletia as agonias e os triunfos de um país. Cada página da primeira edição parecia registrar o som de passos firmes em tempos incertos, um Chico que submergia nas águas turvas da ditadura, que se elevava nos palcos dos anos de abertura, compondo sem jamais deixar-se capturar pela maré.
Ele era a voz em uníssono com as ruas, o bardo silencioso e atento que sempre soube escapar do ruído. Essa biografia inicial imortalizou a jornada de Chico não só como um compositor, mas como um símbolo: um eco brasileiro que ressoava nas décadas como se estivesse na pele de cada brasileiro.
Mas em 2024, a biografia reaparece como uma partitura inacabada, quase sinfônica. Zappa agora se aventura pelo segundo ato, como quem se atreve a narrar o intervalo entre a calmaria e a tempestade. Os anos de 2011 até hoje marcam um Brasil que se redescobriu e se perdeu, e Chico, como espelho e lente, atravessou essas transformações com uma caneta e um violão, dando-nos Caravanas, Essa Gente, e seus romances que versam sobre o Brasil com a mesma delicadeza com que se fala de um ente querido — aquele que amamos mas que também nos desilude. Nesse período, Chico recebeu o Prêmio Camões, um reconhecimento que parece inevitável, mas que ele carrega com a mesma leveza com que fala do mundo e da arte: é um coro silencioso à sua vocação, uma declaração universal ao artista que se ergue acima das fronteiras e fronteiras, como uma bandeira de resistência.
A figura de Carol Proner adentra a narrativa, iluminando um lado menos conhecido, uma camada adicional que confere à biografia tons inesperados e íntimos. A relação entre Chico e Carol não é uma mera nota de rodapé, mas uma canção própria, que percorre o livro com suavidade, como um refrão que se repete, lembrando-nos de que toda trajetória é também um caminhar a dois, um olhar que acolhe. Nesses momentos, Zappa não se permite invasão; há uma sensibilidade em seu relato, um respeito que emerge ao descrever a cumplicidade que Carol e Chico compartilham.
Mas a jornada que Zappa narra vai além dos limites do romance e da intimidade. Os anos recentes de Chico carregam a marca de uma realidade dividida, um país em ebulição que se revela nas entrelinhas das letras de suas canções. Caravanas, que viajou o Brasil, tornou-se palco para um espelho distorcido do presente, onde Chico encontrou não apenas aplausos, mas também o incômodo silêncio dos que prefeririam ignorar sua crítica.
Ele, por sua vez, oscilou entre palcos e exílios voluntários, como seu refúgio na França, onde a alma parecia se desprender do peso. Esse movimento, descrito na biografia, não é o de uma fuga, mas o de um artista que entende a necessidade de observar de longe para voltar mais inteiro, mais incisivo, ao seu papel de cronista e poeta.
MARCHAS E CONTRAMARCHAS
Nas páginas novas da biografia, sentimos o ritmo das marchas e contramarchas políticas que nunca cessam, e Chico, sempre atento, absorve essas camadas como quem recolhe fragmentos de um espelho partido. Ele nunca foi apenas um observador; sua arte sempre ecoou o desconforto e a esperança, sempre reverberou a política, fosse no exílio de um samba ou na sutileza de um poema. Zappa constrói esse relato como quem entende o Chico cidadão, um poeta guerreiro que continua a desafiar o conforto de uma postura neutra.
A biografia reflete sua essência como artista que sabe que a neutralidade, por vezes, é uma forma de silêncio, e Chico, consciente dessa responsabilidade, persiste em sua melodia desafiadora.
Há algo de confessional em Para Seguir Minha Jornada. Lemos essas páginas como quem espreita uma conversa ao pé do ouvido, entre confidências e desabafos. Zappa revela o irmão alemão que inspirou O Irmão Alemão, a fase reflexiva da pandemia em que surgem os versos de Anos de Chumbo, a volta a temas que, para Chico, parecem ser eternos. Cada episódio não é apenas uma memória, mas uma revisitação do íntimo, um reencontro do artista consigo mesmo. A narrativa explora as profundezas dessa alma brasileira — uma alma que parece encantada, espantada com o próprio reflexo, mas nunca subjugada.
Ao fim, Para Seguir Minha Jornada se mostra um cântico de celebração, um tributo vibrante que, longe de soar como despedida, renova a promessa de que Chico ainda tem muito a nos dizer. Ele segue como um farol, uma bússola, que nos guia não apenas pelo passado, mas para além dele, numa esperança teimosa que é também resistência. E para os leitores, que se veem enlaçados entre as letras e os silêncios, Chico continuará a ser a voz que nos desvela, que nos conecta ao que há de mais visceral e sublime no Brasil.
Cada verso, cada acorde, é mais que música: é um convite a seguir dançando, a seguir esperando, a seguir sonhando ao lado desse eterno poeta.
SERVIÇO
Para Seguir Minha Jornada, Editora Nova Fronteira, 528 páginas.
* Silvio Demétrio é professor de Jornalismo na UEL e editor da newsletter de Cultura "Tanga, a verdade quase nua."