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Mitos da estrada beat

Nelson Sato - Folha de Londrina
02 out 2005 às 16:31

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Um era mais louco do que o outro. Da turma, restaram poucos ainda vivos para falar da fascinante saga movida a literatura, drogas, sexo, jazz, viagens e filosofias orientais. Nenhum outro grupo de poetas e escritores foi tão fundo na negação dos valores, ideais e instituições vigentes na sociedade americana. Nenhum movimento literário dos Estados Unidos foi mais influente ao longo do século 20.

Cinquenta anos depois, a geração beat continua ecoando no mundo, particularmente no Brasil onde novos livros voltam a abastecer um sempre ávido batalhão de leitores. No cinema, já é grande a expectativa em torno da versão para as telas de ''On The Road'' (Pé na Estrada), autobiografia ficcional de Jack Kerouac (1922-1969) que o diretor Walter Salles se comprometeu a rodar entre 2007 e 2008.

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Kerouac foi um dos que participaram da célebre leitura de poesia na Six Gallery, em São Francisco, a partir da qual os beats ganharam projeção na América. A data mágica é 13 de outubro de 1955. Jack não subiu ao palco, não recitou nenhum verso, mas esteve lá agitando a noitada. Enquanto os amigos apresentavam seus poemas, ele oferecia vinho aos espectadores e aplaudia as intervenções.

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Mais tarde ocuparia três páginas do romance ''The Dharma Burns'' (Os Vagabundos Iluminados), publicado este ano no Brasil, para descrever o evento. Um dos pilares da literatura beat, o escritor inventou um estilo informal de escrever e difundiu um estilo desencanado de viver. Como autor, introduziu nos livros a sonoridade e ritmos da fala coloquial das ruas. Influenciado pelos músicos do bebop, anotou certa vez que desejava ser um ''um jazz-poeta, improvisando um longo blues em uma jam session''.

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É famosa a versão de que ele teria datilografado ''On The Road'' em três semanas, num rolo de papel telex, em espaço um e sem parágrafos. O livro só viria a público em 1957, depois de amargar seis anos de recusa pelas editoras. Ao ser lançado, sua filosofia nômade inspirou hordas de jovens a se aventurar de carona pelas estradas. Bob Dylan foi um dos que fugiram de casa após sua leitura.


Saudada como a ''bíblia da geração beat'', a obra trouxe a glória, mas roubou o sossego do autor. Incomodado com a fama instantânea, Kerouac voltou a morar com a mãe em Lowell (Massachests), sua cidade natal, distanciando-se dos amigos e das estradas. Numa guinada regressiva, passou a defender idéias reacionárias manifestando-se favoralmente à invasão americana no Vietnã. Inchado pelo álcool, morreu de hemorragia gastrointestinal, aos 47 anos.

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Uivos radicais
De trajetória oposta, Allen Ginsberg (1926-1997) manteve a rebeldia ao longo de seu percurso. Principal idealizador do recital na Galeria Six, saiu consagrado daquela noite após ler pela primeira vez em público a primeira parte de seu poema ''Howl'' (Uivo), ainda não publicado. ''Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus / arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa...'' declamou ele, sob êxtase coletivo no galpão de oficina mecânica transformado em ponto de encontro de artistas alternativos da cidade.


Foi o clímax de uma sessão poética em que estavam presentes ainda Kenneth Rexroth (convidado para ser o mestre de cerimônias), Michael McClure, Gary Snyder, Robert Duncan, Philip Whalen e Philip Lamantia. O impacto provocado pela noitada converteu-os em celebridades. Reprisada em maior escala num grande auditório em Berkeley, no início de 1956, resultou em convites para novas apresentações e reportagens em jornais.

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Ninguém mais desconheceria aquela safra de poetas e escritores, que entrariam para a história da América como os heróis precursores da contracultura dos anos 60. Outros nomes fariam parte do grupo, como Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti e Carl Solomon. Ginsberg, um calo no pé dos conservadores, atravessou quatro décadas atuando em movimentos anti-totalitários, anti-racistas, anti-militaristas e vários outros ligados aos direitos civis.


Politizou, como ninguém antes dele, a causa homossexual e a liberação da maconha. Como autor, legou poemas como ''Howl'', ''Kaddish'' e ''The Fall of America'' considerados clássicos da poesia contemporânea. Willian Burroughs (1914-1997), ausente no célebre recital, completa com Ginsberg e Kerouac a trindade nada santa do esquadrão beat. Juntos, protagonizaram incontáveis experiências radicais, como orgias sexuais e ingestão de drogas alucinógenas.

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Extremista dos costumes
Burroughs, o guru do grupo, foi o mais extremo nas atividades ilícitas e nas experimentações literárias procurando integrar as transgressões na vida e na arte. Amigo de ladrões e traficantes, viciou-se em morfina e heroína. Era chamado de ''farmácia ambulante''. A atração pelo submundo, porém, não excluía o interesse pela leitura. Durante um bom tempo, passava para os amigos textos de outros autores que julgava importantes.


Desenvolveu teorias sobre a linguagem (que associava a um vírus) até criar influenciado pelo cubismo e dadaísmo o que chamou de ''cut-up'', técnica literária que consiste no recorte e remontagem arbitrária de trechos de textos. Escreveu livros perturbadores e, para alguns, inacessíveis tematizando previsões fantasmagóricas do futuro, desejos bizarros e o universo das drogas.

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''Naked Lunch'' (Almoço Nu), sua obra mais cultuada, foi publicada em 1959 reunindo narrativas lunáticas escritas sob o efeito de heroína. Chegou ao Brasil em meados da década de 80, quando um boom de literatura beat tomou surpreendentemente as prateleiras. Duas décadas depois, a linhagem parece entusiasmar outra vez as editoras locais.


Acabam de chegar duas antologias pela independente Azougue reunindo o melhor dos poetas Gary Snyder e Michael McLure, dois expoentes do movimento. E a Planeta está colocando no mercado o volume de memórias ''Quando Eu Era O Tal'', no qual o escritor americano Sam Kashner narra sua passagem pela Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, entre 1975 e 1976.

No livro, ele descontrói alguma lendas contando seus encontros com Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso e seus discípulos. Quem não gostaria de ter estado no lugar dele?


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