Sobre a cômoda escura, uma velha caneta tinteiro e os óculos de leitura, cuidadosamente dispostos. Eles nos revelam uma vida inteira. Vestígios de passagem, tais como os restos petrificados de braseiros nos contam sobre ancestrais. Já no primeiro momento ela acredita serem sinais definitivos da partida. Talvez sem retorno.
Surpresa consigo mesma, constata que essa possibilidade não causa tristeza ou alegria. Mantém-se como um campo vazio. Busca na memória, apoiada naqueles quase amuletos e o vê calado, fazendo anotações. Homem sempre distante, ensimesmado. Nem um olhar que a fizesse sentir-se presente. A caneta deslizava sobre o caderno, rápida, leve, como uma bailarina, até fazer uma pausa e retornar seu curso um pouco abaixo. Quantas noites? Qual a extensão desse silêncio absurdo? Suavemente a raiva aparece e tantos anos lado a lado parecem sem sentido. Um desvio percorrido arduamente sem se saber desvio e que agora deu em nada. A impossibilidade de corrigir o caminho quase a desespera.
Assim, ela dá dois passos e abre a primeira gaveta, na tentativa de encontrar ali, esquecido, algum mapa dos afetos, resquícios de um dia em que as coisas não foram tão tristes. Inútil. Apenas outros objetos familiares, que só confirmam a tamanho do erro. Sob o peso dos sentimentos, senta-se na poltrona em frente.
O sol da tardinha passa por entre as cortinas e essa luz amena espalhada por toda a sala traz alívio, fugaz, que no momento seguinte se abre para novas aflições. Onde estará? A pergunta denuncia o vacilo e o pensamento desprende-se do passado e voa. Percorre becos, com seus habitantes transparentes que se esgueiram e tateiam paredes úmidas. Penetra em bares desconhecidos, afogados em balcões gordurosos sob a fala pesada dos bêbados. Mas, a raiva e aflição se dissipam e no céu claro à sua frente desenha-se um resto de ternura, uma necessidade de estender a mão a esse caído. Percebe, entretanto, a repetição dos gestos, as mãos tantas vezes estendidas, o perdão incondicional oferecido a cada volta. A raiva torna-se força e os músculos retesam-se e pronuncia um não que desejava definitivo. Abre a terceira gaveta, só por abrir e dentro o produto das trilhas riscadas com a caneta: poemas dedicados a ela.
Ouve simultaneamente a maçaneta girar e passos leves, irregulares, quase trôpegos, tão conhecidos. E tudo desaparece. E só permanece uma aceitação. Apesar de tudo.