Num domingo perdido nos pedaços de memória, mês de maio talvez, o menino de canelas finas e cabelos espetados vai à igreja. Eram tempos de pura inocência. A missa das nove, o padre alemão, o cântico dos marianos, as imagens de Maria aos pés de Cristo, a água benta gelando a testa no em-nome-do-pai feito às pressas. Só muito mais tarde o menino viria saber que antigos domingos foram feitos de missa, sol claro, vento e almoço nos avós.
O tempo passa por nós sem avisar a que veio. Chacoalha roseiras, bate janelas, emperra dobradiças, faz e desfaz. Mas deixa vestígios na torre da matriz, bussola gigantesca que aponta o céu e nos dá o norte da vida na terra. O menino nada percebe da torre por que a torre está nele como está o coração ou a imagem dos pais, a casa e seus aromas. Nada percebe, pois fomos feitos para perceber coisas distantes e tudo que está ao nosso lado ou em nós é quase invisível. Só conseguimos ver o contrario das coisas. A vida é espelho. Vemos a inocência da infância quando já não somos mais inocentes, nem crianças. Sabemos do sol quando já estivemos nas sombras. Temos a dimensão exata das tempestades depois que elas passam.
Voltar de onde viemos é como uma luz que se acende num quarto escuro que há muito não se abre. Ilumina o que somos. Os tesouros estão todos lá, escondidos.