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A MAQUINA DE ESCREVER

17 jul 2014 às 19:35

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O passado não morre, dizia uma antiga lenda. Ele fica aprisionado nos objetos de seu tempo à espera de ser chamado. Penso nisso enquanto olho para a máquina de escrever recém adquirida. Uma Corona Four fabricada em 1929. Coisa linda. Logo imagino as histórias escondidas entre suas teclas, nas hastes metálicas ou na elegância escura do seu corpo. Quantas vezes aqueles pequenos círculos metálicos com letras no centro foram tocados?

Primeira metade século vinte, talvez num vetusto escritório de Nova York uma secretaria datilografa (verbo morto esse: datilografar) um relatório de reunião. Cabelo cortado "à La garçone," entediada com o trabalho repetitivo. E enquanto martela nas teclas, seus pensamentos voam e pousam no filho que a espera em casa. Talvez pense no namorado que teria partido num navio para longínquos orientes e ela antecipa, desde agora, a solidão que o próximo inverno trará. Há uma distancia enorme entre o relatório maçante e os sonhos e pensamentos dessa mulher. Às vezes essas máquinas, feitas para grafar o que pensamos mostram o descompasso entre os pensamentos que voam e os dedos que nos mantêm ligados ao árido mundo real.

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Por puro acaso olho para as hastes metálicas e me prendo na extremidade onde estão os tipos C e c. E me lembro do ano de fabricação da maquina, 1929. Percebo que essas letras estão mais desgastadas que as outras. Não há duvidas de que essa Corona pertenceu a algum jornal. E nas redações da época um matraquear constante produzido pelos tipos martelando o papel repetiam freneticamente a palavra "Crash", informavam a quebra de um banco, ou o suicídio de algum magnata falido. Os anos vinte, o áureo e ilusório período de abastança se esfacelando sob o peso de uma crise financeira inaudita. As marcas ficaram na história e no metal da maquina de escrever. Eu, arqueólogo diletante, descubro nos metais os vestígios imaginários das descrições das guerras, dos tratados de paz que viriam depois. Ao som compassado e quase marcial dos metais no papel e o triiimm ao fim de uma linha, grafaram-se histórias de casamentos famosos, separações, nascimentos, mortes. Por ali passaram, nessa hipotética redação, tudo que valeu a pena noticiar da vida humana. A Corona Four sempre cumpriu com firmeza e dignidade a função para qual veio ao mundo.

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Quando ela já tinha vivido seus melhores dias e estava para ser jogada num canto de quinquilharias foi adquirida por algum escritor obscuro. Poeta, provavelmente. Como eu sei? Não sei, deduzo. Esse tipo de gente que se apega às inutilidades das coisas e da vida. Como bem esclarece Manoel de Barros, poeta maior, para quem "todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia." Mais que isso ensina que até "terreno de 10X20, sujo de mato – os que nele gorjeiam: detritos semoventes, latas servem para a poesia." Assim sendo é de se esperar que tudo que é desimportante cresce e se torna de primeira necessidade. Não haveria portanto outro destino para esse objeto, a não ser passar de mão em mão entre escritores anônimos.

No meu caso, eu que também acredito que "a reta é uma curva que não sonha", quero deixar bem claro: maquinas de escrever, do século passado, sem serventia, também serve, e muito, para meu prazer e poesia.


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