Antes de iniciar os comentários, duas observações: esta não é uma obra recente. Seu lançamento ocorreu no final do ano passado. Mas "Única Coisa" tornou-se mais conhecido após ter conquistado dois Prêmios Saul Trumpet (Revelação e Melhor Produção). Um feito admirável para a música alternativa. A segunda observação é que este trabalho não se restringe apenas à música, mas traz também literatura e vídeo.
"Única Coisa" é resultado do encontro de três produtores de Curitiba, que uniram seus talentos para criar uma obra única (daí o nome). Três cabeças que compõem uma unidade, como o Cão Cérbero da mitologia grega (que Hércules teve que dar cabo em um de seus 12 trabalhos). Todos são amigos há anos, o que resultou em uma obra espontânea e sincera. Marcelo Borges é fotógrafo, videomaker e já foi dono de um dos bares mais underground de Curitiba, o Hole. Em 1996, ele estava morando no Peixe Cachorro - uma casa na Água Verde onde rolavam festas, shows e exposições aos domingos. Tudo bastante alternativo.
Certa vez, lá aconteceu uma exposição de poesia em lingerie, na qual os visitantes teriam que levar uma peça de "roupa de baixo" com poemas escritos. Marcelo quebrou o protocolo e trouxe fotografias para exibir. Encontrou alguém que seguiu seu exemplo: Amarildo Anzolin, que trouxe poemas em papel, e não em calcinhas, como era solicitado. Um conheceu o trabalho do outro e assim começou a amizade. Mais tarde, Marcelo apresentou para Amarildo um velho amigo: o músico Lúcio Machado, que já tocou em bandas como Acrilírico e Folha Seca. O primeiro trabalho que realizaram em conjunto foi um curta-metragem em vídeo chamado "Exit".
Um experimentalismo com jogo de palavras e imagens abstratas.
Amarildo ficou reponsável pelo texto; Marcelo, pelas filmagens, e Lúcio criou a trilha sonora (eletrônica inquieta, frenética e pesada). Satisfeitos e empolgados com o resultado, pensaram em expandir a idéia para um projeto maior. Este foi o embrião de "Única Coisa", que pôde ser viabilizado graças à Lei de Incentivo Fiscal à Cultura. Foram dois anos de batalha, sendo um deles dedicado inteiramente à produção.
Ficam implícitas três fases durante o processo de produção. Na primeira, Amarildo escreveu um livro de poemas. Em seguida, foram recitados para que Lúcio incorporasse música a eles. Na fase final, Marcelo filmou videoclipes para os 33 poemas musicados. Como resultado, foram produzidas mil cópias de um bonito estojo onde se acomodam um CD, uma fita de vídeo e um livro. Estava concretizado o projeto "Única Coisa". Ele não está sendo vendido, mas doado.
Amarildo Anzolin é dono de um texto fluido. Não liga para lirismos e regras de estilo e parte para o experimentalismo. Às vezes, chega até o poema "sujo". Lúcio Machado foi o produtor musical. Apesar de ser multi instrumentista, não realizou todo o trabalho sonoro sozinho. Convidou músicos amigos para acompanhá-lo. Esta enorme banda (mais de 20 integrantes) recebe o nome de Quisto. Mas não tocam todos de uma vez.
São selecionados de acordo com o estilo da música. Para se ter uma idéia, no CD há desde eletrônica até funk e jazz. Conta ainda com experimentalismos com ruídos, guitarras distorcidas, atonalismo, punk, trip-hop e percussões tribais. Numa classificação genérica, poderia ser dito que o Quisto é uma banda industrial.
Marcelo Borges já trabalha com vídeo desde 1994. Dirigiu os videoclipes das bandas Zeitgeist Co. e Resist Control, que ainda rodam na programação de democlipes da Mtv. Já seus últimos clipes, para as bandas Limbonautas e OAEOZ, não tiveram aprovação da emissora. Produziu também o home video "Elektro", da banda Magnéticos.
Ironicamente, "Única Coisa" foi recusado pelo Festival de Cinema, Vídeo e DCine de Curitiba. O júri responsável pela seleção talvez não tenha entendido o ruidismo das imagens (afinal a proposta era rústica, tosca, marginal). No entanto, "Única Coisa", assim como outros trabalhos de Marcelo Borges, está concorrendo em outros eventos da área, como o Festival de Vídeo de Tóquio, por exemplo.