Espirar e inspirar. Era assim, apenas com os dois movimentos básicos da existência humana, que Toots Thielemans queria ganhar o mundo. E eram todos contra ele, um garoto do subúrbio de Bruxelas na terra dos gigantes. Charlie Parker, Miles Davis, Ornette Coleman, Thelonious Monk, Oscar Peterson, Joe Pass, Ella Fitzgerald. A primeira pergunta que faziam ao saber do menino desajeitado com olhos tímidos sob lentes de fundos de garrafa era: "Quem precisa de uma gaita?". E a segunda, se alguém insistisse: "Quem precisa de uma gaita tocada por um belga?"
Toots chegou manso aos Estados Unidos, munido apenas de seu primeiro instrumento, uma guitarra Gibson acústica, e com o contato de um rapaz do Kansas chamado Charlie 'Bird' Parker. Bobagem. O rapaz do Kansas já era um monstro e conhecia Toots de uma jazz session que haviam feito em um clube de Paris, com Sidney Bechet, Miles Davis e Max Roach. Depois de passar pelo explosivo The Charlie Parker's All Stars, foi recrutado para as forças do pianista George Shearing como guitarrista. "Eu estava lá em 1957, vi Toots tocar no quinteto de Shearing", conta o pesquisador e jornalista Zuza Homem de Mello.
Zuza estava também em Bruxelas, na sala de Toots, tratando de contratá-lo para um dos dois festivais que faria no Brasil, realizados no Anhembi e exibidos ao vivo pela TV Cultura, no final dos anos 70, quando o telefone tocou. Em impressionantes três minutos de conversa, Toots fechava um contrato muito bem remunerado para gravar um jingle publicitário nos Estados Unidos. "Conto isso para dar uma noção da dimensão de Toots. Quando precisavam de um gaitista, o nome que sempre se lembravam era o dele."
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A gaita no jazz, antes e mesmo depois de Toots Thielemans, segue sendo uma espécie rara. Ao contrário do protagonismo que exerce no blues, seu primo pobre, poucas formações se encorajam a incluí-la, como se ameaçasse o trono do sax ou algo parecido. O fato é que a gaita, ou harmônica, de função estritamente melódica e nunca usada em naipes, jamais seria uma coadjuvante. E se o soprador for Toots, então, esqueça a banda. Seu instrumento é diferente dos diatônicos (sem meio tons) usados mesmo por blueseiros virtuosos como Little Walter e Paul Butterfield. A gaita cromática, que Stevie Wonder popularizou na música negra norte-americana, tem até quatro sons para cada orifício e um grau maior de dificuldade.
Toots tinha olhos e ouvidos para a música brasileira quando poucos lhe dispensavam atenção. Ninja na discrição, agia com estratégia. Quando Elis Regina passou pela Europa no final dos anos 60, com um grupo chefiado por Roberto Menescal, Toots os recebeu de forma tão delicada que Elis e os músicos pensaram se tratar de um enviado da gravadora. Só foram descobrir de quem se tratava quando o próprio Toots subiu ao palco onde estavam os músicos, em uma casa noturna de Bruxelas, e pediu para tocar junto.
"Podemos fazer Bluesete?" Na terceira nota do tema mais conhecido de Toots, Menescal quase desfaleceu. "Era ele, o próprio!", conta. Toots e Elis gravariam juntos, em 1969, um álbum cheio de temas da bossa nova.
O gaitista brasiliense Gabriel Grossi deu uma das últimas alegrias a Toots Thielemans. Há três meses, fez questão de ir à sua casa, em Bruxelas, entregar em suas mãos o disco que fez em homenagem ao professor. O álbum We Do It out of Love, recém lançado, traz Grossi e mais cinco dos maiores harmonicistas da nova geração tocando dois temas cada. Além de Grossi e seu parceiro, Alex Rossi, estão lá o espanhol Antonio Serrano, o suíço Grégoire Maret, o argentino Franco Luciani e o francês Olivier Ker Ourio.
"Foi muito bom poder ter feito a ele essa homenagem em vida", diz Grossi. "Ele é a maior expressão, o homem que provou que este instrumento poderia fazer qualquer coisa no jazz, como o sax ou a guitarra. Ele colocou a gaita em um patamar que não existia. Foi com ele que esse instrumento deixou de ser um brinquedo".