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K-pop deixa lado fofinho e ganha viés militante ao ajudar o Black Lives Matter

25 jun 2020 às 15:10

No final de maio, durante os protestos contra o racismo desencadeados pela morte de George Floyd -homem negro assassinado por um policial branco em Minneapolis, nos EUA-, fãs de k-pop se apropriaram de uma hashtag racista e a esvaziaram de seu sentido original. Eles publicaram no Instagram vídeos de suas bandas preferidas com a tag #whitelivesmatter (vidas brancas importam), de tal forma que quem procurasse por conteúdo de supremacia branca encontraria imagens de jovens cantando e coreografando música pop sul-coreana.

Dias mais tarde, após a polícia de Dallas pedir que cidadãos lhes enviassem vídeos de "atividades ilegais de manifestantes" nos protestos contra a violência policial nos EUA, fãs de k-pop inundaram o software com vídeos de ícones do gênero musical, como as bandas BTS, Blackpink e Red Velvet. O volume foi tão grande que o app travou. No último fim de semana, fãs de k-pop -junto com usuários do aplicativo de compartilhamento de vídeos Tik Tok- disseram ter sido responsáveis pelo esvaziamento do primeiro comício em meses do presidente americano Donald Trump.


Os grupos pediram que as pessoas se cadastrassem para ir ao evento em Oklahoma sem a real intenção de comparecer, inflando o número previsto de espectadores para 1 milhão. O público foi de apenas 6.200 pessoas, informou a revista Forbes.
O ativismo online dos fãs de um gênero musical inofensivo, tido como politicamente neutro e totalmente formatado para o mercado, tem a ver com a internacionalização do k-pop na última década e com a explosão das comunidades de fãs, afirmam especialistas e entusiastas do estilo ouvidos pela reportagem. Isso porque os ídolos, como são chamados os artistas do estilo, pouco se posicionam.


Com carreiras e, não raro, vidas pessoais monitoradas de perto por grandes conglomerados, os artistas mais influentes costumam se ater a temas relacionados à indústria nas suas redes sociais. Quando se pronunciam, é sobre grandes desastres humanitários, conta a estudante universitária catarinense Rebecca Pezzatto, que administra um portal sobre o grupo BTS.
A guinada em direção ao ativismo tem partido, assim, do outro lado desse fenômeno -os fãs. Pezzato afirma que o portal, o maior sobre o BTS na América Latina, interrompeu por quatro dias postagens com assuntos da banda para falar do Black Lives Matter, compartilhando informações sobre racismo no Brasil e incentivando os seguidores a doarem dinheiro para a causa.


A estudante e os colegas que coordenam a página decidiram se pronunciar ao se darem conta da influência que conseguiam exercer sobre 300 mil seguidores. "Eu não teria acesso a eles pessoalmente, mas por essa plataforma tenho o poder de mudar a cabeça de alguém", diz ela. Vale notar que o próprio BTS doou US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões) para o movimento –e seus fãs, apelidados de "army", ou exército, arrecadaram o mesmo valor nas redes. Considerados como um dos grupos mais politizados da cena, foram dos poucos a fazer mais pelos protestos do que postar uma hashtag.


Antes do apoio ao Black Lives Matter, Pezzatto e membros de outros fã-clubes afirmam que as comunidades só faziam campanhas para arrecadar fundos para causas apoiadas pelas bandas, como saúde mental, resgate de animais e violência contra crianças e adolescentes, temas menos controversos que o combate ao racismo. A exceção foram as eleições presidenciais no Brasil, há dois anos. Quando a vitória do presidente Jair Bolsonaro foi anunciada, páginas de diferentes fã-clubes adotaram uma imagem negra, lembra Graziele Chaves, administradora de um portal sobre o grupo Big Bang.


Segundo Chaves, a comunidade tem muitos membros LGBT, e temia ataques homofóbicos. Na data do segundo turno, ela chegou a discutir com apoiadores do atual presidente nas redes sociais. "Eu nem imaginava a comunidade poderia se importar tanto com política, mas tudo aconteceu de forma gradativa, porque certas atitudes ofendiam muito diretamente as pessoas."
Outro fator de influência nos protestos de agora é o uso de guerrilha do Tik Tok, aplicativo com alto poder de viralização e ainda imune à ação de robôs que espalham mensagens políticas, a exemplo do que acontece no Twitter.


"Eu não tinha visto nenhum movimento político até agora no Tik Tok. Mas tá muito entregue que o negócio tem potencial", diz Alexandre Bessa, professor de canais digitais da ESPM. Para Bessa, contudo, é difícil apontar o esvaziamento do comício de Trump por conta desta mobilização, "mas é interessante estudar pelo movimento." Miranda Ruth Larsen, americana que finaliza doutorado em k-pop pela Universidade de Tóquio, compartilha da opinião de Bessa e entende ser complicado creditar o fiasco do comício à ação dos fãs. Segundo ela, a imprensa embarcou facilmente nesta história por querer "uma narrativa de bem-estar sobre o ativismo de jovens cidadãos dos EUA".


Por outro lado, Larsen enxerga uma mudança na conscientização dos fãs, que estão sendo chamados para conversas foras de suas rodinhas devido à grande atenção que a mídia dá ao gênero e à globalização do pop coreano. Há 99 milhões de fãs de k-pop espalhados por 98 países, segundo a Korea Foundation, instituição filiada ao Ministério das Relações Exteriores sul-coreano. Embora o ativismo dos fãs esteja ganhando protagonismo, não se pode colocá-los todos sob um manto progressista, ela afirma. "Acho que ter uma expectativa de ação e se referir aos fãs de k-pop como um bloco monolítico é muito perigoso. Fãs individuais tomam suas próprias decisões para se envolver e depois coordenar [outros]."


A projeção internacional dos fãs mais engajados é nova, mas na Coreia do Sul eles já haviam se unido em torno de causas anteriormente, conta Hanna Kim, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos da ESPM. Em 2016, alunas da Universidade de Mulheres Ewha, em Seul, lideraram protestos contra a presidente Park Geun-hye, durante os quais cantavam versos da faixa "Into the New World", do grupo feminino Girls' Generation. A presidente sofreu impeachment no ano seguinte.
O próprio surgimento do k-pop, no início da década de 1990, teve conotação de protesto. Em seus primeiros anos, o gênero foi um movimento de oposição à censura e ao direcionamento de conteúdo exercido por governos autoritários na cultura sul-coreana durante as décadas anteriores.


Foi a partir da democratização da Coreia do Sul, em 1987, que a música local se abriu para influências externas, dando mais espaço para a livre expressão de sentimentos e pensamentos. "Alguns artistas do início do k-pop, como Seo Taiji & Boys, tinham músicas de tom crítico social, além de trazerem a diversidade do rap, hip-hop, rock, o lado fashion e coreografias impressionantes", afirma Kim.


Passada a primeira década, o mercado falou mais alto e o posicionamento político dos grupos, que nunca foi forte a ponto de ser uma marca distintiva, foi se amainando. Os ídolos surgidos a partir do ano 2000 -movimento que culminou, em 2012, com o hit global "Gangnam Style", de Psy- falavam sobre temas universais, como amor, paixão, desilusão e desenvolvimento pessoal, sem incentivar posturas combativas.

Há uma possibilidade de que o ativismo digital de agora se repita em outros momentos políticos relevantes, a exemplo das eleições presidenciais americanas de novembro, considerando o tamanho e o poder de influência desses grupos. "Por que não usariam essa força que têm para lutar pelo que acreditam? Principalmente, pela liberdade de poder se expressar e serem respeitados como indivíduos, conteúdo sempre presente nas letras de k-pop", finaliza Kim.


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