A fila saía da livraria e dobrava a esquina, enquanto carros aguardavam vaga no estacionamento. O sucesso do lançamento de um livro de Martha Medeiros em uma rua do Rio fez o guitarrista dos Titãs e escritor Tony Bellotto refletir: qual história pode agradar mais leitores? Aquelas que tratam de adultério, pensou. Mas, não uma tradicional, envolvendo homens, mas com mulheres adúlteras. Surgia, assim, a ideia que se tornaria no romance "Machu Picchu" (Companhia das Letras), que acaba de chegar às livrarias.
"Eu queria falar sobre a família", justifica ele, autor de outras sete obras, a maioria narrando as aventuras policiais do detetive Bellini. "Pretendia também usar da ironia, do sarcasmo, algo como Billy Wilder fazia em suas comédias." Há, de fato, uma pitada de cada gênero no romance, que se assemelha à concepção de um filme: a partir de cenas intercaladas, o leitor conhece a história de Zé Roberto e Chica, casal que, naquele dia, vai comemorar dezoito anos de casamento.
Ambos estão presos a um monstruoso engarrafamento no Rio, o maior da história da cidade. Ele, num táxi; ela, em seu carro. Sem ter o que fazer, aproveitam para pensar nos últimos meses da relação. A situação não é boa - enquanto Chica mantém um caso com Helinho, colega de trabalho, Zé Roberto inicia um relacionamento virtual com uma garota que conheceu no Facebook, conhecida por W19. Completam a família um filho maconheiro, uma ex-mulher psicótica, uma filha ausente e uma misteriosa afilhada.
"Quando comecei a escrever, Chica era a narradora, mas Zé Roberto começou a se intrometer, talvez um impulso machista", diverte-se Bellotto. "Decidi, então, trabalhar separadamente nas histórias de cada um para depois cruzá-las." Ali foi o momento mais delicado, mas também prazeroso, pois Bellotto viu-se obrigado a descobrir os momentos de corte de uma narrativa para outra. Com isso, passou a exercitar um método de escrita que lhe é peculiar - o policial.
É o que se observam nos momentos de tensão gerados tanto pela aproximação de um desconhecido ao carro de Chica como no de uma cigana ao táxi de Zé Roberto: Bellotto descreve detalhes, escassos, mas importantes, honrando o aprendizado que teve com a leitura de autores clássicos como Agatha Christie e Dennis Lehane, especialmente na forma com que eles tratavam de personagens infantis. "A criança, às vezes, é maldosa", comenta Bellotto, justificando as atitudes de um de seus protagonistas.
Outro delicioso desafio foi promover uma batalha entre os sexos, especialmente em relação ao comportamento. Com isso, Bellotto revela-se antenado com os novos tempos, ao mostrar o sexo virtual como uma alternativa de prazer cultivada mais pelos homens, enquanto as mulheres optam ainda por relações carnais. "Busquei, no entanto, mostrar uma nova faceta das relações modernas, pois o homem não ostenta sozinho a posição de único traidor - ele também passa a ser o traído."
A alternância de pontos de vista ocupa toda a primeira parte do livro, quando os personagens estão distantes um do outro. Já no capítulo seguinte, em que todos se reúnem para o jantar festivo, Bellotto foi obrigado a retomar a estrutura tradicional. "Tentei várias alternativas, como utilizar apenas um narrador, mas não fiquei satisfeito e optei pelo onipresente."
Mesmo assim, o jantar se transforma em um frenético e engraçado acerto de contas, em que verdades surpreendentes são reveladas, beirando o absurdo. Trata-se também do livro mais picante de Bellotto, principalmente por conta das descrições do ato sexual. Nada, porém, que ultrapasse o limite do bom gosto.
Outro detalhe importante é a explicação para o título do livro. Congestionamento era o pensado por Bellotto, mas a imagem dos carros parados, abandonados, que sua mente criou naquele momento em que esperava por um autógrafo de Martha Medeiros foi mais forte. Para mais detalhes, convém ler o livro até o final, pois é nas últimas linhas que surge a explicação.
Serviço:
"Machu Picchu"
Autor – Tony Belotto
Editora - Companhia das Letras
Páginas – 120
Quanto - R$ 32
Ubiratan Brasil
Agência Estado