Aos 75 anos, a escritora chilena Isabel Allende vive momentos agitados - em poucos dias, mais precisamente em 8 de janeiro, pretende cumprir a tradição pessoal de iniciar um novo romance nessa data. Foi em um 8 de janeiro que ela começou a escrever uma carta para o avô, que estava no leito de morte, e que se transformou no ponto de partida de seu primeiro romance, "A Casa dos Espíritos" (1982), até hoje um de seus maiores sucessos. "Espero ter um ambiente tranquilo para começar a escrita", disse, um tanto titubeante.
O motivo é amoroso: Isabel está namorando o advogado americano Roger Cukras, que está de mudança para a casa dela, um pequeno apartamento onde a escritora foi viver depois de se separar, em 2015, do também advogado Willie Gordon, com quem viveu durante 28 anos. Para compensar a dor, Isabel deixou a confortável mansão que dividia com Gordon para viver no pequeno espaço, onde sentiu tranquilidade para escrever "Muito Além do Inverno", romance agora lançado pela Editora Record.
A solidão, unida à sensação de ainda se ver como estrangeira nos Estados Unidos (onde vive desde 1988), facilitou a criação de uma trama que envolve três personagens de meia-idade e que começa com um acidente de trânsito, no qual, em meio a uma nevasca, Richard Bowmaster, um professor universitário de 60 anos, bate na traseira do carro de Evelyn Ortega, uma jovem imigrante ilegal da Guatemala.
O que seria um trivial incidente ganha maiores proporções quando Evelyn surge, de repente, na casa do professor pedindo ajuda. Como ele não entende o espanhol falado pela jovem, Richard pede ajuda a sua inquilina, Lucía Maraz, uma chilena de 62 anos, que passa uma temporada nos Estados Unidos como palestrante na mesma universidade em que Richard dá aula. É o início de uma jornada que envolve dor e compaixão, e que vai do friorento bairro do Brooklyn até a Guatemala de um passado recente. Recua ainda ao Chile dos anos 1970 e ao Brasil, dos 1980.
"O livro tem uma inevitável carga política", afirma Isabel, que vê também a sociedade americana sob um pesado inverno, representado pela tumultuada administração de Donald Trump, "um homem perigoso" como identificou na conversa por telefone para esta entrevista.
O amor sempre foi um tema recorrente em sua obra, desde a paixão entre jovens, até chegar ao amor entre anciãos, como acontece agora em "Muito Além do Inverno". Como avalia as variações que esse assunto teve ao longo de seus livros?
Um momento: os personagens não são anciãos, pois estão na casa dos 60 anos! Eu é que sou, aos 75 [risos]. Digamos que são pessoas maduras. Mas, falando sério, esse romance nasceu quando meu casamento estava mal. Era uma relação solar, mas se transformou em longos invernos. Saí de uma casa grande e fui para um bem menor, apenas com meus cães. Lá, surgiram dúvidas: por que termina o amor? Será que se pode continuar amando depois de tanto tempo? Escrevi movida por essas inquietações. Depois, conheci outro homem e, mesmo com o livro já terminado, me vi tomada por outra questão: como é namorar aos 75 anos? Descobri que é o mesmo que namorar aos 17, só que com uma sensação de urgência. Não tenho tempo mais para a pequenez da vida, para jogos estúpidos.
O amor, então, muda ao longo da existência?
Os sentimentos não mudam, apenas as formas de aproximação, especialmente depois do advento da internet. Hoje, a conquista é mais fácil e rápida, mas raramente profunda. Antes, havia o que chamávamos da química de uma paixão, o envolvimento do casal. Agora, os jovens permanecem adolescentes durante mais tempo, portanto, não querem longos comprometimentos.
Outro tema importante de seu livro, também característico de sua obra, é a experiência dos imigrantes com seus novos países.
Sim, é um tema que me interessa muito. Em "Muito Além do Inverno", são três imigrantes, com histórias muito poderosas. Richard, por exemplo, é filho de um sobrevivente do Holocausto da Segunda Guerra Mundial e, por conta disso, ele passou por um inverno emocional semelhante ao que eu vivia quando escrevi o romance. Ele não vive sob risco, mas não sente o sabor da existência. Evelyn, a menina da Guatemala, pela própria condição, prefere não ser vista, por isso vive em silêncio, como se não existisse. Finalmente, Lucía é a mais ativa, passou pelo exílio, enfrentou o cárcere e agora vive sozinha, aos 62 anos.
A senhora passou por situação semelhante, não?
Sim, vivi em dez países ao longo da minha vida, principalmente como exilada política. Sempre me senti estrangeira em qualquer lugar. Minha história tem um pouco do Chile, outro tanto dos Estados Unidos, por isso entendo o problema dos refugiados, com quem trabalhamos em minha Fundação [fundada em 1996 em homenagem à filha Paula, prematuramente falecida e cujo trabalho em comunidades carentes na Venezuela e Espanha inspirou sua criação por Isabel]. Não tive problemas para criar a personagem Evelyn porque, na Fundação, trabalhamos com refugiados como ela. Não precisei criar nada. Lá, acolhemos jovens e crianças que buscam os pais, que não têm documentos. Não são uma massa uniforme, pois queremos ver o rosto de cada uma, conhecer suas histórias.
Nesse sentido, como acompanhou as promessas de Donald Trump de limitar a presença de imigrantes nos Estados Unidos?
É um homem perigoso, com promessas infundadas, como a criação do muro na fronteira do México, algo que definitivamente não resolverá o problema. Mas esse, creio, é o menor dos males que ele pode causar - me preocupa essa tendência de provocar uma guerra mundial ao confrontar a Coreia do Norte. Confio na força da oposição para barrar esses desejos infundados de um fascista exacerbado, um homem que alimenta o ódio e a xenofobia, alguém, enfim, que se transformou no megafone de grupos como a Ku Klux Klan que, antes dele, vivia escondida e, depois de sua posse, passou a se apresentar em público, sem medo de represálias.
A senhora tem, por tradição, sempre começar um novo livro em 8 de janeiro. Como está perto, está tudo pronto para a escrita?
Bem, mais ou menos. Estou habituada a viver em um ambiente tranquilo para me concentrar. Mas Roger está se mudando para meu pequeno apartamento, trazendo suas roupas e sua bicicleta [suspira]. Torço para que a gente consiga se adaptar um ao outro.