Os Irmãos Grimm, em sua compilação dos vários contos através da Alemanha, publicaram a versão mais conhecida na época, e essa se tornou, com o tempo, a mais divulgada, mas há muitas outras.
A origem desse conto é controversa. É possível ter iniciado na Idade Média e se mantido pela tradição oral.
No início da história contada pelos Grimm, uma rainha costurava, no inverno, ao lado de uma janela negra como o ébano. Ao lançar o olhar para a neve, picou o dedo com a agulha, e três gotas de sangue pingaram sobre a neve, o que a deixou admirada e a fez pensar que, se tivesse uma filha, gostaria que fosse "alva como a neve, rubra como o sangue e com os cabelos negros como o ébano da janela".
Não tardou, e a rainha teve uma filha de descrições idênticas ao seu pedido: branca como a neve, com os cabelos negros como o ébano e os lábios vermelhos como o sangue. Mas, tão logo sua filha veio ao mundo, a rainha morreu.
O pai deu à filha o nome de Branca de Neve, e logo tornou a se casar com uma mulher arrogante, esnobe e vaidosa, possuidora de um espelho mágico que só falava a verdade.
A rainha consultava seu espelho, perguntando quem era a mais bela do mundo, ao que ele sempre respondia: "Senhora Rainha, vós sois a mais bela". Quando Branca de Neve fez dezessete anos e a madrasta voltou a perguntar, o espelho respondeu: "Você é bela, rainha, isso é verdade, mas Branca de Neve possui mais beleza".
Cheia de inveja, a Rainha contratou um caçador e ordenou que ele matasse Branca de Neve e lhe trouxesse seu coração como prova, na esperança de voltar a ser a mais bela. O caçador ficou inseguro, mas aceitou o trabalho. Pronto para matar a bela princesa, o caçador desistiu ao ver que ela era a menina mais bela que já havia encontrado, e rapidamente a mandou fugir e se esconder na floresta; para enganar a rainha, entregou a ela o coração de uma corça. A rainha assou o coração e o comeu, acreditando ser de Branca de Neve. Mas, ao consultar o espelho mágico, ele continuou a dizer que Branca de Neve era a mais bela.
Branca de Neve fugiu pela floresta, até encontrar uma casinha e, ao entrar, descobriu que lá moravam sete anões. Como era muito gentil, limpou toda a casa e, cansada pelo esforço que fez, adormeceu na cama dos anões.
À noite, ao chegarem, os anões levaram um susto, mas logo se acalmaram ao perceber que era apenas uma bela moça, e que a mesma tinha arrumado toda a casa. Como agradecimento, eles cederam sua casa como esconderijo para Branca de Neve, com a condição de ela continuar deixando-a tão limpa e agradável.
A rainha não tardou a descobrir o esconderijo de Branca de Neve e resolveu matá-la. Disfarçada em uma velha mascate, foi até a casa dos anõezinhos. Chegando lá, ofereceu um laço de fita a Branca de Neve, que aceitou. A rainha ofereceu ajuda para amarrar o laço em volta da cintura de Branca de Neve e, ao fazê-lo, apertou-o com tanta força que Branca de Neve desmaiou. Quando os anões chegaram e viram Branca de Neve sufocada pelo laço de fita, rapidamente o cortaram e ela voltou a respirar.
A rainha novamente descobriu que Branca de Neve não estava morta, e voltou a se disfarçar, mas desta vez como uma velha senhora que vendia escovas de cabelo, na verdade envenenadas. Ao dar a primeira escovada, Branca de Neve caiu no chão, desmaiada. Quando os anões chegaram e a viram, rapidamente retiraram a escova de seus cabelos e ela acordou.
A rainha, já enlouquecida de fúria, decidiu usar outro método: uma maçã enfeitiçada. Dessa vez, disfarçou-se de fazendeira e ofereceu uma maçã; Branca de Neve ficou em dúvida, mas a Rainha cortou a maçã ao meio e comeu a parte que não estava enfeitiçada, e Branca de Neve aceitou e comeu o outro pedaço, enfeitiçado. A maçã engasgou na garganta de Branca de Neve, que ficou sem ar. Quando os anões chegaram e viram Branca de Neve desacordada, tentaram ajudá-la, mas não sabiam o que causara tudo aquilo, e pensaram que ela estava morta. Por achá-la tão linda, os anões não tiveram coragem de enterrá-la, e a puseram em um caixão de vidro.
Certo dia, um príncipe que andava pelas redondezas avistou o caixão de vidro, e dentro a bela donzela. Ficou tão apaixonado, que perguntou aos anões se podia levá-la para seu castelo, ao que eles aceitaram e os servos do príncipe a colocaram na carruagem. No caminho, a carruagem tropeçou, e o pedaço de maçã que estava na garganta de Branca de Neve saiu, e ela pôde novamente respirar, abriu os olhos e levantou a tampa do caixão.
O príncipe a pediu em casamento, e convidou para a festa a rainha má, que compareceu, morrendo de inveja. Como castigo, ao sair do palácio, acabou tropeçando num par de botas de ferro que estavam aquecidas. As botas fixaram-se na rainha e a obrigaram a dançar; ela dançou e dançou até, finalmente, cair morta.
ANÁLISE - PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
Era uma vez e não era uma vez...
Assim se inicia a história que deseja estar num tempo sem tempo; de viver na intensidade dos sentidos e de se situar na forma sem forma do espírito do imaginário.
Quando o ego se disponibiliza para sua escuta a história se apodera dos sentidos vívidos do corpo e insinua as trilhas a percorrer para a resolução de padrões repetitivos devendo ser transformados.
Essas simples histórias de contos de fada são como C. G. Jung considera o mito: "expressões inconscientes de nós mesmos" (Jung e Kerényi 1989, p. 162).
Há um elemento imperecível nos mitos e nos contos de fada que é a chave para a compreensão de um padrão inconsciente da civilização. É o arquétipo que mapeia e nos leva ao conhecimento tal qual o fio de Ariadne através do labirinto.
...Havia um reino muito próspero e feliz. E para coroá-lo da máxima alegria, o reino todo se exultava pela notícia da gravidez de sua rainha.
O REINO representa todo o território da psique. A união bem sucedida do rei e da rainha significa que houve a união dos opostos. Uma das etapas do processo de individuação que é absolutamente natural, já aconteceu, no entanto, a psique é dinâmica, sobretudo é vida, portanto não para de avançar nesse processo, de modo que esses valores alcançados já estão superados e precisam de um broto, da novidade, do bebê que vai depor rei e rainha antigos. Que vai trazer ao reino o elemento da sombra na imagem da bruxa e refazer a união dos opostos no final, não antes de lidar com territórios selvagens, bruxa, anões, estratégias sinistras, aliados e inimigos, suspensão da vida e finalmente o novo despertar.
É preciso vivências e conflitos para ocorrer as pulsões, o pulsar da vida.
É por isso que a psique representada pelo reino deseja o seu terceiro elemento. Deseja O BEBÊ, aquele que trás a novidade, aquele que sempre há de vir, o devir.
A rainha agora grávida, numa fria tarde de inverno se põe a bordar diante de uma janela da cor do ébano. Ao se ferir com a agulha, um pingo de sangue cai sobre a neve que está contra a janela.
Diante do contraste de cores, a rainha se encantou e desejou que seu bebê fosse assim branco feito a neve, de bochechas vermelhas feito o sangue e com os cabelos pretos do ébano.
O desejo, como não poderia deixar de ser, mais uma vez, construiu, até que nasceu a princesa Branca de Neve. Tristemente órfã, imediatamente após seu nascimento.
A mãe boa morreu. A menina não pode mais contar com mamãe que lhe dá colinho e a superprotege. Terá de se haver com suas próprias pernas e potências. E como se não bastasse ainda terá uma madrasta que a quer ver morta!
O caminho de individuação exige a orfandade. É necessário abandonar pai e mãe para obter o conhecimento sobre si mesmo que leva a ação e não ao narcisismo.
O processo de individuação se tivesse uma voz, duramente diria:
"Se queres continuar narcisicamente encapsulado em sua zona de conforto, fique com papai e mamãe, lute pela proteção do Estado e ideologias quaisquer, mantenha para sempre pais terrestres e pais celestes e, sobretudo, culpe-os pela sua mísera existência e ou idolatre-os pelas suas nobres conquistas."
Está tudo bem, tudo bem! A mãe boa morreu. Essa mãe a tornaria uma pessoa fraca. A madrasta é a mãe má que, na verdade, irá guiar Branca de Neve em seu caminho de maturação e força.
O que seriam dos heróis e das heroínas das histórias se não fossem os vilões e as vilãs?
O mesmo é válido para a psique. De nada vale trabalhar-se com os aspectos lindos e meiguinhos da psique, nem com as fadinhas e nem com os unicórnios cor-de-rosa. Os que trazem crescimento ao analisando em psicologia analítica são os vilões mais temerários do inconsciente.
PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO ALQUIMICO
Enquanto o reino se paralisa entre as forças do luto e da alegria, entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.
O que se pode produzir em um momento de suspensão como na carta do Enforcado do Tarô¿ Momento esse que pode durar anos de depressão¿
Lembremos que no procedimento alquímico de transformação utilizam-se os chamados metais vulgares ou baixos como o chumbo para produzir o ouro.
Assim, utilizando dessa analogia, podemos dizer que as emoções, pensamentos e sentimentos reprimidos e ou indesejados pela consciência tidos como baixos e vulgares, como a raiva, solidão, tristeza, sofrimento, desprezo, inveja, ciúmes, luto, medo, angustia, etc.; vai cada um deles, se depurando até chegar ao acolhimento do ego, onde então, tornar-se-á ouro.
O ouro aqui representa o brilho do sol, o deus Apolo que todos os dias nos trás o sol em sua carruagem brilhante; representa a luz do dia; a luz da consciência.
Aqueles sentimentos e conteúdos que antes habitavam as trevas, a partir do processo alquímico, ganha o status de luz, de consciência. E devo lhes dizer e lhes alertar que todos os seres das trevas almejam tornarem-se luz!
De modo que o ego, depois de suas zil resistências, ao interagir com os seus sentidos (quaisquer que sejam eles) não mais despreza o seu corpo, sua psique, seu reino, sentindo-se bem dentro de sua própria pele, podendo, enfim, reinar sobre si mesmo.
A primeira fase alquímica é chamada de nigredo (o ébano da janela), o negro, a cor que não projeta a luz, mas que a retém. Indicando que o conhecimento está retido, está introvertido e guardado só para si.
Na segunda fase, ocorre o albedo (a neve), a brancura, o equilíbrio, o tédio, o neutro. Mas, na brancura não há vida, não há pulsação. Para que haja vida é necessário o vermelho, o sangue, as pulsões, o vivo e inquietante, o êxtase.
MATURAÇÃO DA FEMINILIDADE
Voltando lá para o conto de fada, o novo que chegou é uma garota, representante da força psíquica feminina que dará continuidade ao feminino materno que morreu.
Esse reinado precisa ser deposto porque nele não há lugar para a sombra, tanto feminino quanto masculino precisam ser transformados, mas nesse conto a ênfase é dada ao aspecto feminino da psique, que de uma beleza excepcionalmente feminina e fútil terá de passar para uma feminilidade mais consistente cuja beleza esteja associada à maturidade psíquica.
A madrasta má de um modo sombrio irá impulsionar a pequena Branca de Neve a se tornar mais forte e mais sábia depois de se confrontar com suas artimanhas.
A força psíquica feminina é de acolhimento que posteriormente, se juntará àquele que será o novo rei, o novo princípio masculino dominante da psique, pois como veremos, o velho rei representa um conteúdo antiquado e já superado pela psique, um valor que deve ser deposto para dar lugar a um novo valor mais atualizado, um novo rei, um novo principio masculino dominante na psique que deve estar sempre se refazendo de acordo com a dinâmica do fluxo de vida e da reflexão do ego sobre a sua ocupação da existência.
Essa nova força feminina de agregação de novos valores que contemplam a diversidade e multiplicidade terá de se haver com a velha forma feminina de pensamento.
Assim, lá nos confins da Terra uma bruxa consulta seu espelho mágico que novamente lhe confirma ser a mais bela dentre todas. O que significa que existe uma postura narcísica há muito estabelecida na psique, uma zona de conforto, uma certeza poderosa e falaciosa.
Toda a força masculina do pai de Branca de Neve estava sucumbida pela beleza da sua nova rainha. A beleza refletida no espelho. A beleza que não abriga o calor do sentimento e tão somente a ilusão da boa aparência tal e qual no Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde.
No entanto, Branca de Neve agora já crescida, passa a ser extremamente admirada por todo o reino tanto por sua beleza quanto por seus modos elegantes e cordiais.
E dessa vez, quando a bruxa pergunta: "Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?".
O espelho revelador responde: "Sim. Branca de Neve é a mais bela".
Seu encanto vem do coração. Branca de Neve possui capacidade de amar.
Sua madrasta possui a capacidade de encantar os homens. Possui a beleza fútil da feminilidade engendrada apenas para agraciar a sociedade.
A força desse feminino recém-chegado e inovador já se faz sentir na psique e o núcleo narcísico começa a desmoronar. O espelho refletor de si mesmo admite a existência de uma nova possibilidade de crescimento para fora de seu encapsulamento.
A fúria da inveja somada ao engessamento de velhas posturas e contra aquilo que sempre há de vir seja a queda, a velhice, a morte, os novos rumos e valores, o voo ao desconhecido, o trilhar sem saber, o sol que agora se dirige ao poente, pode gerar uma força apegada e obcecada pelo "que já foi" desmedida, que agora irá procurar derrotar o belo novo que se insurge contra o antigo modo de conduzir e ocupar a existência.
A bruxa seduz o velho rei e agora como madrasta e rainha, ordena ao caçador que mate Branca de Neve e como prova de sua lealdade, lhe entregue o coração, o centro da pulsação da vida, o representante da capacidade de amar.
A figura de feminino anterior a Branca de Neve se contentava em ser bela, em personificar uma virtude exclusivamente feminina. Ao se contentar em ser apenas uma fêmea para o macho a mulher não adquire sua individualidade e muito menos progride em seu processo de individuação, consequentemente, torna-se vazia, um mero enfeite, um vaso de boas vindas à projeção do homem.
O velho rei, o princípio masculino mais fiel às tradições, se deixa levar pela bruxa que deseja impedir o novo feminino que agora brota de modo franco e determinado.
O CAÇADOR é um dos aspectos da força masculina. Aquele que está mais próximo dos animais. Mais próximo aos instintos. E por caçá-los e fazer o enfrentamento, ele vem representar um aspecto mais honesto do ego por admitir, conscientemente, suas forças animalescas e tratá-las dentro do princípio de força e não da moralidade.
O caçador espreita o instinto, aprende sobre seus modos e jeitos. Conhece seus truques, aprende a respeitá-los por sua força e por sua sabedoria. Sabe decidir quando e como colocar limite neles ou como e quando deixar passar.
Devido a tal proximidade, o caçador confere ao ego um menor risco de doenças neuróticas e está livre da sociopatia. Quanto mais próximos aos instintos, mais haverá saúde psíquica e quanto mais distante dos instintos mais psicologicamente doentes estaremos.
Todos nós precisamos urgentemente conhecer nosso caçador.
No conto, depois de matar Branca de Neve ele teria de levar seu coração para a madrasta e rainha como prova de sua lealdade na missão que lhe foi confiada. Isso talvez signifique uma alusão aos rituais primitivos de adquirir o "mana", a força ou espírito daquele que foi abatido através da ingestão de seu coração.
O caçador se compadece e não vê sentido em matar sua presa de modo que segue suas próprias regras e poupa a vida de Branca de Neve libertando-a na floresta e levando à madrasta o coração de uma corça no lugar do coração da menina.
Aqui presenciamos um processo interessante guiado pelo aspecto do masculino caçador. Aparentemente, ele fracassa em proteger Branca de Neve. Mas, se examinarmos com atenção, veremos que ele conduz a menina ao território que lhe é sagrado e de seu conhecimento e aprendizado.
A floresta é o local onde Branca de Neve poderá se apossar de seus instintos mais loucos e se familiarizar com os sete anões, conteúdos da psique necessários para seu crescimento e fortalecimento psicológico.
Além disso, posteriormente, a floresta será o palco da transformação de menina em mulher e, também, de seu encontro com o masculino positivado de sua psique, fechando um ciclo em seu caminho de individuação e assim derrotando (transformando) as forças contrárias à sua saúde psíquica.
O caçador, mais uma vez, como animus, ou seja, como conteúdo masculino da psique, fez seu papel de psicopompo, de guia para o ego.
Ao consultar o espelho mágico, a bruxa descobre o engano e ordena a morte do caçador.
Assim, a força contrária à modificação do pensamento e, consequentemente, do comportamento, que se conquista através dos enfrentamentos aos conflitos e instintos, foi imobilizada e Branca de Neve, a nova força de vida está perdida na floresta. Perdida numa confusão de sentidos e sentires, de dúvidas, angústias, ansiedade, medo e a mercê das fúrias.
O ego enfrenta a morte que poderá tanto conduzi-lo a um novo modo de ocupação da existência quanto a uma irremediável paralização neurótica.
Depois dessa morte simbólica, Branca enfrentará ainda mais três outras mortes. Somente na quarta morte é que Branca de Neve acorda para uma nova dimensão de existência psíquica a par de suas conquistas internas e finalmente alcança a união com seu oposto, o que significa ir além da dicotomia, vencer trevas e luz e engendrar a realidade multifacetada.
Nessa história há saída. Depois de muitas batalhas, a morte dá lugar a uma nova dinâmica de forças.
Enfrentando seus fantasmas, Branca de Neve está apavorada e se precipita mais e mais para dentro da floresta. Exausta, encontra uma casinha diminuta com camas também diminutas. Os moradores estão trabalhando. Une as camas, deita-se nelas e adormece sendo despertada pelos sete anões que retornaram do trabalho cantando assim em uníssono: "Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou...".
A nova força que ascende ao domínio do velho ego, depois de se perder em meio à floresta encontra uma construção humana. Encontra um código que é familiar ao ego, embora se apresente de uma maneira diminuta. São trabalhadores. Escavam minas de pedras. As pedras guardam as memórias de toda a vida da Terra.
Todos os dias, se levantam ao amanhecer e se encaminham para as minas e quebram pedras, abrindo caminhos por debaixo da Terra, escavando a Terra, descobrindo, conhecendo a história da Terra, a história da psique humana.
Trabalham duramente para alcançar o reconhecimento do ego, por que cada um deles representa uma força psíquica que foi rejeitada pela consciência.
Finalmente se encontram com Branca de Neve. E eles são anões por que estiveram soterrados na psique, sem espaço suficiente para se espicharem, se erguerem e se encompridarem.
OS SETE ANÕES E SUAS REPRESENTAÇÕES
Branca de Neve, representante do ego nesse conto, deverá tomar consciência desses conteúdos psíquicos antes de enfim, concluir a etapa de união dos opostos que acontece representativamente no casamento com o príncipe.
ATCHIM :
Sensibilidade ao meio. Os cinco sentidos são utilizados de modo a perceber o que se passa no ambiente a sua volta, detectando as sensibilidades dos animais, das pessoas bem como a atmosfera emocional do ambiente.
Quando negativado ou negado pela consciência se traduz em intolerância social ou insensibilidade.
ZANGADO:
Aquele que tem a capacidade de se revoltar, de ficar indignado com alguém ou com algo. A indignação é necessária tanto para se proteger quanto para proteger o outro e ou modificar um determinado cenário político/social.
Negativado torna-se rabugice, violência e ira sem fundamentação na sabedoria, irracional.
FELIZ:
Capacidade em se alegrar pelo princípio do prazer em detrimento do princípio de morte. De fáceis aspirações, leveza e criatividade.
Negativada tende a alegria fabricada e ou distorcida e compulsiva.
SONECA:
Capacidade imagética e delirante. O prazer de sonhar e estabelecer vínculos com a realidade através de produções e práticas.
Negativado busca escapismos e rebaixamento dos sentidos ou a exacerbação deles.
DUNGA:
Capacidade de escuta. De grande acolhimento, de amor e compaixão.
Negativado o ego pode se conduzir a uma postura passiva/agressiva.
DENGOSO:
Capacidade de se comportar delicadamente. Aquele que consegue demonstrar brandura e que tem o poder de grande ternura.
Negativado, porém, usualmente se utiliza de manobras sentimentais para conquistar coisas e pessoas.
MESTRE:
Capacidade de concentração, de aprendizado, memória, entendimento e análise, bem como da expressividade do conhecimento adquirido.
Voz interna que o ego escuta e que, invariavelmente, o orienta e o ensina. O ego o sente como sendo mais velho e mais sábio que ele mesmo. Carl Gustav Jung chama de a voz do Self, a voz do Inconsciente Coletivo, a voz do registro da história de toda a Humanidade que nos fala todos os dias e todas as noites.
Negativada, quando o ego não a acolhe ou nega, o próprio ego se arroga em sabedoria onipotente e sofre da doença da razão.
Muitos autores e muitos tradutores chamam o Self de Si Mesmo. No entanto, traduzir a voz do Self por voz de Si Mesmo reduz imensamente o seu real significado, sobretudo porque lhe dá um aspecto extremamente individualista.
No desenho do aparelho psíquico de Jung, o Self é aquele que congrega em si todos os arquétipos. Então, quando queremos falar sobre arquétipos podemos nos referir sobre imagens do Self.
O Self possui a idade da humanidade, desde que ela se iniciou ele também se iniciou porque a psique se inicia com o homem e a mulher. O Self é o registro de toda a história psíquica de toda a humanidade em forma de imagens.
O planeta Terra possui 4,543 bi de anos, a voz do Self possui a mesma idade.
Nessa história que vimos, somos o rei e a rainha que foram depostos, somos a bruxa, somos a princesa que fez seu caminho de individuação, somos o príncipe que também enfrentou seus instintos e fez seu caminho, somos o rico reino, somos o vilarejo pobre que cerca esse reino, somos a taberna e o vinho, o prostíbulo e a prostituta, a igreja e o santo, somos a floresta, somos os animais da floresta, somos as árvores, o crocodilo no pântano, somos o pântano, somos os peixes do riacho, somos o riacho, somos a rocha que sustenta o mar e somos o mar. Somos o céu, o sol, a estrela cadente e as que surgem altaneiras.
A ciência acaba de comprovar que somos feitos da poeira estelar!
E essa é a voz do Self, somos UM com todas as coisas do universo e somos múltiplos e complexos em todos os "si mesmo" de cada pessoa e de cada animalzinho desse planeta.
Não há fronteiras e nem alfandegas no Inconsciente Coletivo, não precisamos de passaporte e a linguagem é a do imaginário que conta o conto e encanta em todas as línguas do planeta.
Somente uma nova força do ego aliada aos seus instintos poderá desterrar e ver, pela primeira vez, que tudo aquilo que julgava ser atributo, nada mais era do que autoengano e que o fluxo de vida corre e borbulha independente de si mesmo e muito, muito além de si mesmo. Sobretudo, que sua territorialização por razão e poder é fruto de sua ignorância.
AS QUATRO MORTES SIMBÓLICAS VIVENCIADAS POR BRANCA DE NEVE
No decorrer do percurso do processo de individuação, todos aqueles que se atrevem a olhar para dentro, a olhar para si mesmos e se comprometer com aquilo que vê , sofre não apenas uma, mas sete vezes sete vezes sete vezes sete...mortes, um jogo de palavras para definir que as mortes acontecerão todas as vezes que seu chão lhe faltar e esse lhe faltará diversas vezes até que entenda de uma vez por todas que ele não existe e que jamais existirá, permitindo a existência e a atuação do inconsciente.
Marie-Louise Von Franz, em entrevista para o Jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, de 02 de novembro de 1987, por Gilson Schwartz, comenta que:
"Mas, para Jung é preciso render-se. A ‘dificuldade’ nunca será superada. A ‘sincronicidade’ não pode ser manipulada. Assim, Jung promove uma derrota completa da racionalidade. Mesmo assim há uma possibilidade de manipulação no conceito junguiano. Se você tem uma atitude positiva frente ao inconsciente, ele se torna muito mais benevolente. Se não pudéssemos manipulá-lo em absoluto não haveria psicoterapia. A partir de uma atitude consciente, frente ao inconsciente, a ‘sincronicidade’ pode trabalhar positivamente para o paciente, ele é curado. Eu diria que não se pode manipular, mas, tornar o contato com o inconsciente mais amigável".
PRIMEIRA MORTE SIMBÓLICA
Branca de Neve vivencia sua primeira morte ao tomar consciência de seu abandono. Vê-se órfã de mãe, pai ausente e abandonada a sua própria sorte aos perigos da floresta.
Nesse momento o ego percebe que está só na selva de pedra e que só pode contar consigo mesmo, mais tarde, depois que conheceu suas personalidades parciais em sua análise psicoterápica ele pode dizer: "agora eu posso contar comigo e com os muitos de mim!". É o que acontece no fim dessa história!
O ego poderia sucumbir em auto piedade, mas quando não se tem mais nada a perder pode-se lançar mão daquela coragem selvagem que nos diz "é agora ou nunca" e com ela seguir adiante com a bravura do guerreiro.
Em meio ao caos, Branca de Neve encontra a casa dos anões, conteúdos psíquicos junto aos quais ganha mais poder de reflexão e maturidade.
SEGUNDA MORTE SIMBÓLICA
Disfarçada em uma velha mascate a madrasta ofereceu um laço de fita a Branca de Neve e o amarra em volta de sua cintura apertando-o com tanta força que Branca de Neve desmaiou.
A madrasta corresponde a um conteúdo psíquico anteriormente dominante. O ego lhe era obediente até o momento em que se viu em perigo de morte.
No caminho de transformação é usual que o ego acabe voltando a trilhar o caminho anteriormente conhecido, embora perigoso, por ser familiar, parece ser mais fácil, e o ego se deixa seduzir. No entanto, aquilo que ele já conquistou que, nesse caso, foi o acesso aos sete anões, vem ao seu auxílio e ele retorna a sua jornada saindo assim de seu sono, de sua dormência.
A cisão entre a parte superior e inferior do corpo, em meio à cintura, corresponde à cisão neurótica entre a sexualidade e os sentimentos.
A pessoa torna-se assexuada, não permitindo sentir as pulsões sexuais embora acredite sentir as demais emoções.
A imagem arquetípica da sereia é a que melhor traduz esse estado neurótico.
TERCEIRA MORTE SIMBÓLICA
Como uma velha senhora que vendia escovas de cabelo, a madrasta se disfarça e presenteia Branca de Neve. Ao dar a primeira escovada, Branca de Neve caiu no chão, desmaiada, pois a escova estava envenenada. Logo, porém, os anões a salvam.
Novamente o ego resiste em sua jornada e volta a "dormir", dessa vez sua cabeça foi envenenada. Assim como no mito de Sansão e Dalila, suas forças foram minadas através dos cabelos.
Os pensamentos que não contemplam também os instintos, além de sua razão, não nutrem a psique e consequentemente, enfraquecem o ego.
QUARTA E ÚLTIMA MORTE SIMBÓLICA
Novamente, a força predatória da pulsão de morte paralisa a ação da pulsão de vida.
A bruxa disfarçada em uma pobre senhora a vender maçãs de porta em porta para seu sustento, ardilosamente seduz Branca de Neve que ao morder a maçã enfeitiçada cai em sono profundo.
Agora somente a força da ação, da atitude, da coragem e desapego advindas do poder engendrado pelo principio dessa nova consciência do ego poderá restabelecer suas forças e recriar um caminho para a união dos opostos.
O caixão de vidro sugere que o sono, a morte é um estado consciente, que o ego está acompanhando esse estado e que a força masculina de sua psique está a caminho e que em breve sairá da floresta, do mundo selvagem, através da carruagem, através de uma construção feita pelo ego.
Enquanto Branca de Neve está sendo velada pelos sete anões que a julgam morta, um príncipe passando ali por aquelas bandas percebe a cena e ao se aproximar fica tão extasiado com a beleza de Branca de Neve que não resiste em dar-lhe um beijo.
O príncipe representa a força masculina da psique feminina, é o animus, o poder objetivo, o poder de ação e razão.
Seu desejo destrava a força de absorção aos novos valores e a nova atitude de vida surge traduzida em casamento, que significa união dos contrários que produz o diverso e o múltiplo.
Diante dessa conquista a fúria se volta contra si mesma. E a madrasta quebra seu espelho e sua "verdade" que já não é a mesma.
A raiva nunca foi do outro, a raiva é pertencente àquele que a sente.
O espelho narcísico se estilhaça e a bruxa perde seu poder sobre a consciência do ego que assim libertado do velho padrão de existir, participa da festa de seu reino, de sua psique.
Um dia eles também ficarão velhos e todo o processo terá de ser refeito e vivificado.
A vida é dinâmica e em seu bojo traz a morte, nada mais natural.
É por isso que a historia acaba com a frase dúbia em si mesma:
"... e eles foram felizes para sempre".
Dúbia porque o verbo "foram" remete ao passado e "para sempre" remete ao futuro.
O ego entrou no mundo caótico e selvagem do inconsciente de modo solitário e a pé, tendo como guia o caçador, agora ele sai com carruagens, cavalos, sete anões e um príncipe a acompanhá-lo para um novo reino e reinado.
Nada mal. Grande conquista.
O acolhimento ao novo, ao que vem e ao que há de vir, é a beleza vivenciada através da intensidade dos sentidos do corpo que se encontra viva e desperta.
Como falamos aqui apenas do animus, deixo a minha HOMENAGEM a anima através desse poema:
EROS E PSIQUE de Fernando Pessoa
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
E-mail: [email protected]
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
JUNG, Carl Gustav – Psicogênese das Doenças Mentais – vol. III
Durand, Gilbert – As estruturas antropológicas do imaginário – Ed. Martins Fontes – 1ª edição – SP – 1997.
VON FRANZ, Marie-Louise - Alquimia, Introdução ao Simbolismo e à Psicologia - 1991 - Ed. Cultrix - São Paulo
ESTÉS, Clarissa Pinkola – Contos dos Irmãos Grimm – Ed. Rocco – 1ª ed. – 2005 – RJ – Rio de Janeiro