A guerra verbal travada entre defensores da presidente afastada Dilma Roussef e os partidários do impeachment e do presidente interino Michel Temer desmascara um mito sobre o povo brasileiro: quando o assunto é política, futebol ou religião, não somos cordiais. As redes sociais são o reflexo de tanta agressividade, afinal, são em posts, comentários e compartilhamentos que muita gente expressa a falta de tolerância com opiniões diferentes. No plano "real", porém, manifestações de ódio começam a fazer parte da rotina. Cartazes, palavras de ordem nas manifestações ou mesmo a troca de ofensas e até cusparadas entre deputados, durante a votação do impedimento da presidente na Câmara, por exemplo, evidenciam o clima de discórdia.
"O que observamos é uma forte tendência à intolerância e à afirmação de paixões", avalia o psicólogo Aurélio Melo, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Segundo ele, os brasileiros nunca foram cordiais. "O que se vê nos debates políticos atuais é que as pessoas estão apaixonadas, mas na paixão não há reflexão, as posições viram uma crença. O apaixonado só vê um lado, não consegue debater", explica.
Melo diz que teve esperanças na eleição de 2014, quando começou a perceber brasileiros finalmente se interessando por política. "Mas logo entendi que não era política, no sentido de discussão ou de militância, mas sim discursos apaixonados", diz.
Para ele, o atual momento político deveria ser encarado como uma oportunidade para debater ideias e descobrir que é possível pensar diferente, mas continuar convivendo. "Porém, na sociedade individualista em que vivemos, manter a própria opinião é mais importante que a amizade com alguém. Eu mesmo tenho dúvidas sobre expressar minha opinião e as pessoas não entenderem que continuo gostando delas", exemplifica.
Uma consequência importante desta realidade é a perda da possibilidade de discutir política de forma saudável. "Outra perda é não sermos capazes de desenvolver relações mais humanas e vínculos mais significativos", afirma, lembrando que nas redes sociais os vínculos são frágeis. "Na discordância, você deleta a pessoa e tudo bem", critica.
O professor enxerga a exacerbação do individualismo nas discussões sobre política, mas também em relação a futebol e religião. "Há um elemento em comum nas conversas sobre esses temas, que é a intolerância", opina. As consequências para a vida pública, porém, são mais graves na política. "Há o risco da radicalização, o que dá margem para o aparecimento de figuras autoritárias que vão sintetizar essa incapacidade para conviver com a diferença. Democracia não é fazer o que quer, mas viver na diferença e respeitar a decisão da maioria, o que é muito difícil", pontua.
"Sair do grupo de WhatsApp ou Facebook", porém, não é a solução para combater a intolerância. "É preciso aprender a emitir opiniões sem ser intolerante, com polidez", defende.
Agressividade
A professora doutora Vanice Maria Oliveira Sargentini, coordenadora do Laboratório de Estudos do Discurso da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), afirma que "a intolerância que se exibe nos discursos deixa ver suas raízes, que em geral refletem a nossa história de desigualdade social, estando nisso envolvidas as relações de poder".
De acordo com ela, a agressividade do discurso pode insultar, mesmo não sendo construída com palavrões. Entre exemplos citados pela pesquisadora estão o fato de uma grande revista ter publicado uma capa expondo a suposta histeria da presidente afastada Dilma Roussef ou mesmo quando manifestantes representam o ex-presidente Lula por um boneco inflável com vestimenta de presidiário. "Isso reforça o estigma negativo atribuído ao presidiário, que a princípio, por um discurso social, deveria ser aquela pessoa que está retida para aprender a se reintegrar na sociedade e não para ser punida com sofrimento."
Para Vanice, a disseminação de discursos permeados pela agressividade contribui para a construção de uma política como espetáculo. "A política-espetáculo, exibida inicialmente nas televisões e atualmente nas redes sociais, utiliza uma ‘língua de vento’, ou seja, uma nova política da fala, caracterizada por formas breves, pequenas frases sloganizadas, nas quais se valoriza a astúcia verbal e não a estratégia política". Já o modelo anterior era baseado no que chama da "língua de madeira": discursos longos e repetitivos.
De forma paradoxal, Vanice aponta que nos últimos anos, no Brasil, houve uma docilização do discurso político, seguida de uma intensa agressividade. "Nas campanhas anteriores a 2002, o Lula era um candidato que falava para o eleitor como se estivesse no palanque", disse. Diante da necessidade de se tornar mais "polido", como exigia a tela da TV, ele passou a abaixar o tom de voz, controlando os gestos, de modo a tornar-se mais palatável para esse olhar dos eleitores mediado pela televisão. "Passou a ser designado como ‘Lulinha paz e amor’, uma vez que teria esmaecido as distensões, para conquistar os seus eleitores", analisa.
Desde a campanha de 2014 até hoje, entretanto, ela observa que o comportamento é o avesso do que foi descrito. "A pulsão agressiva física e psicológica que se quer direcionar ao opositor converte-se muitas vezes na verbalização", alerta.