Prosaico

UM CONTO. DUAS HISTÓRIAS

31 mai 2014 às 05:16

No conto moderno encontramos sempre duas histórias. Na relação entre essas duas histórias até o desfecho é que os autores se diferenciam e constroem suas narrativas.
Comparar dois grandes escritores é um bom caminho para identificar como eles conduzem de maneira diferente as duas histórias: Hemingway e Kafka.

Hemingway mostra o tempo todo a superfície e esconde o fundamental. Como um prestidigitador literário realça o que é banal, corriqueiro. Realça tanto que você acaba desconfiando dos diálogos longos, sem pé nem cabeça, das conversas fúteis, sem que nada aconteça. É quase um não conto. Todo o significado está perdido nas entrelinhas. Um exemplo é esse conto, "Os assassinos", do qual reproduzimos um trecho.


"George olhou o relógio na parede detrás do balcão.
— São cinco horas.
— O relógio marca cinco e vinte. — disse o segundo homem.
— Adianta vinte minutos.
— Ora, dane-se o relógio. — exclamou o primeiro — O que tem para comer?
— Posso lhes oferecer qualquer variedade de sanduíche, — disse George — presunto com ovos, toucinho com ovos, fígado e toucinho, ou um bife.
— Para mim, suprema de frango com ervilhas e molho branco e purê de batatas.
— Esse é o jantar.
— Será possível que tudo o que pedimos seja o jantar?
— Posso lhes oferecer presunto com ovos, toucinho com ovos, fígado...
— Presunto com ovos — disse o que se chamava Al. Vestia um chapéu de feltro e um sobretudo preto abotoado. Sua face era branca e pequena, seus lábios estreitos. Levava um cachecol de seda e luvas.
— Me dê toucinho com ovos. — disse o outro. Era mais ou menos da mesma estatura que Al. Embora de rosto não se parecessem, vestiam-se como gêmeos. Ambos usavam sobretudos muito justos para eles. Estavam sentados, inclinados para frente, com os cotovelos sobre o balcão."


Há a suspeita de algo não vai bem. Dois homens vestidos como mafiosos pedindo sugestão de um prato ao do balcão, discutindo as horas. É evidente que não era aquilo que os trazia ali. Mas o que? Hemingway não entrega nada de mão beijada. E assim ele conduz as duas histórias só ficando claro ao final. Às vezes nem mesmo no final.

E o que faz Kafka? A literatura nunca mais foi a mesma depois dele. O clima é de estranhamento, fantástico, mas é também absolutamente crível. De onde é extraído? Para ser tão convincente ele extrai de alguma caverna de nós mesmos. Há algo profundamente humano nas situações bizarras. Precisamente é isso que ele faz. Esconde a superfície, tira dela toda a importância e expõe radicalmente as vísceras, o fantástico, o mundo onírico. Mais que uma história, nós temos uma atmosfera opressiva, de horror e de medo. Em "A metamorfose," a descrição da vida comum é apenas o preparativo, um caminho para mostrar a estranheza do mundo:


" Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por
si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão
duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o
arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual
a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.
Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente
finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar
quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as
quatro paredes que lhe eram familiares. Por cimada mesa, onde estava deitado,
desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa
era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de
uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada."

A descrição da metamorfose de Samsa é tão apavorante como verdadeira. E Kafka nos conduz em meio ao horror com elegância e até certa dose de humor, como se a opressão do cotidiano, a vida sem saída, o esmagamento que nos transforma em coisa muito parecida com baratas, adquirisse uma materialidade natural. Ninguém estranha a transformação do caixeiro em inseto.
Nem a mãe, nem o patrão. O horror!

Bibliografia:
"Formas Breves" Ricardo Piglia
"Os assassinos"
http://acervo.revistabula.com/posts/web-stuff/os-assassinos-de-ernest-hemingway
"A metamorfose"
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16641


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