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LONDRINA, ETERNA COMO A ÁGUA E O AR

11 set 2014 às 11:52

No ano da graça de 2934, durante três dias e três noites do mês de dezembro, nevou sobre Londrina. Como sempre acontecia há mais de um século. A cidade celebrava nesse ano em particular, os mil anos da sua fundação. Branca e envaidecida como uma noiva, festejava os trinta centímetros de gelo que cobriam as ruas. Ao longo de toda a antiga Higienópolis, agora uma extensa praça, crianças se divertiam com bonecos de neve e casais dançavam, patinando no lago Igapó, congelado desde o início do inverno. O relojão do edifício América, iluminado pelo luar, exibia seus ponteiros marcando o tempo. Paciente, sólido como um sábio ancião, guardador do segredo das horas.

Mil anos é muito tempo. Tudo havia se transformado no inacreditável. Inverteu-se o clima, inverteu-se a lógica do trabalho, estendeu-se como nunca o tempo de vida da espécie humana. Não mudou, no entanto, a surpreendente memória dos londrinenses. Durante o mês das comemorações do milênio, multiplicavam-se contadores de história, vistos em cada esquina. Descreviam em detalhes os primeiros dias da cidade, quando nem cidade era, mas uma clareira na mata. Falavam do baque das balsas nas barrancas do rio Tibagi, do dificílimo desembarque das mulas que pateavam no assoalho corroído das embarcações toscas. As varas de porcos fuçando a lama e a borda da mata virgem. E desciam das balsas, homens e mulheres manchados de terra. Sabiam que dias difíceis os esperavam. O sol nas costas, o trabalho duro das derrubadas, serras e machados, o som surdo e seco de perobas batendo no chão, o preparo da terra, as incertezas das primeiras colheitas. Era gente carregada de esperança e coragem como nunca se viu.

Neste dezembro, na cidade na qual Londrina se tornou séculos depois, cada morador era um reprodutor dos mitos. Afirmavam ouvir até hoje os sons daquela jornada mata adentro.


Nas casas à noite, sob o fogo das lareiras - a despeito de todas as transformações, era na eternidade do fogo que os homens do futuro continuavam a se aquecer – as crianças ouviam que Londrina nasceu, quase que por acaso, numa rua de Londres. E antes mesmo de ser uma cidade, foi desenhada em detalhes sobre uma escrivaninha. Cresceu, graças à riqueza vinda de um frutinho chamado café, do qual extraiam uma bebida apreciada em todos os cantos da terra. Criou universidades, orquestras, bandas, poetas, teatros, em todas as épocas. E nessas noites geladas os jovens se surpreendiam em saber que no ano 75 do século vinte, uma geada destruiu todos os cafezais. E que esse gelo que hoje faz parte das suas vidas, naquela época era um mal que beirava à tragédia.

Cidades não são mais que um grande emaranhado de vontades que se confundem. Cidades são conjuntos enormes de pedacinhos de vida. São como as pessoas, apegadas às pequenas inconstâncias diárias, flutuando na constância de séculos. E mesmo quando se passa um milênio, ao soprarmos as cinzas do tempo, surgem as brasas daquilo que jamais muda. Foi sempre assim a história de Londrina. Mil anos se passaram, com os altos e baixos de toda existência longa. Mas na essência da sua alma está escrito o profundo desejo de enfrentar a mata, os anos de colheita parca, as injustiças, os tempos dolorosos. E a cada mergulho nas dificuldades surge mais à frente, alegre, mais rica, mais generosa. Mesmo depois de mil anos recebe quem chega com um enorme sorriso e depois de quinze minutos tem mais um amigo de infância.

Nos festejos do seu primeiro milênio, um londrinense gritou bem alto: "Londrina, seu nome é generosidade!"


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