Prosaico

BOIS

06 mai 2015 às 11:34

- Coloco mil bois no pasto. Mas gente, de carne e osso, não quero. Ninguém! Boi muge, rumina pensativo. Gente só tem querer. Quer isso e aquilo.Gente é problema, boi é dinheiro.
Riscou fundo o chão e pontuou com varinha toda a raiva. Ficou na areia a partitura da mágoa.
O pasto verde se espalhava até lá na frente, marcado aqui e ali pela brancura dos nelores. O sol, a luz, o vento seco e arenoso agitava a aba do chapéu. Terencio o segurou com firmeza, como se segurasse algo precioso. Prestou mais atenção no tourinho arisco que dava galopes curtos, distanciando-se do rebanho, talvez para mostrar que nem todo gado é manso. Espantava sem querer as garcinhas que faziam do lombo dos bois seu repasto.

- Eu gosto é do boi. Os outros podem ir quando quiserem. Já foi a Ana, já foram os filhos. Chorei na primeira vez. Pedi a ela que ficasse. Mas não. Saiu num destino incerto, dizendo que qualquer lugar para além daquela colina era melhor. Subiu em passos largos e quando não a vi mais, me desmanchei. Agora não. Penso diferente. Pode ir. Não me faz falta. Fico aqui e rumino os acontecidos que já são tantos. Não tem mais espaço para pensar coisa nova. È tanto entulho para se remexer que não cabe mais nada.


E os bois se juntavam, calmos, alheios às ruminações de Terencio e seguiam pelos caminhos curvos, nas trilhas antigas, escavadas pelos cascos. Contornavam o riacho até um morrinho e aos poucos sumiam de vista. Ele se sente ainda mais só. Assusta-se. "E se os bois também se forem?".Logo em seguida a resposta vem clara. "Bois não são gente. Gostam dessa paz e sossego. Amarram-se por aqui e tudo que precisam têm. Pasto bom, água e sombra para os dias mais quentes". Lembrou-se do boi Verdasco. Ali, atrás da casa, à vontade. Não seguiu com os outros. Olhava Terencio assim, olho no olho, sem pressa. "Tem olho bondoso, inocente. Eu sempre enxergava alma de gente nele. Não tem não. Pessoas com olhos bondosos é que têm alma de boi. Esse aí não me deixa."


Ele olhava o Verdasco, fraterno, entendia a solidão de boi velho, esse deslocamento do mundo, incapaz de seguir os outros. Nem era parecido com eles. Couro manchado, aspas enormes de boi açoriano, antigo, magro. Era um boi colonial. Nem de perto tinha a modernidade agitada do gado indiano.



O silencio da tarde, esse boi e ele. Mais ninguém.
- O filho mais velho disse que não ia encaroçar as mãos roçando pasto. Foi para a cidade dizendo que ganharia mais. Não adianta discordar. Filho um dia enjoa de olhar a casa, a cama cria espinhos. Se vão. Ficou aqui esse silêncio largo, entranhado, que faz a gente pedir um barulhinho qualquer para ter sinal de vida. Eles levaram os ruídos com eles. É, os ruídos se juntaram lá na cidade. O barulho de lá esvaziou o som daqui. Mas para lá eu não vou. Fico aqui, parecendo arvore, que quanto mais fica,mais enraíza e cumpre o destino sem se mexer. Não sou de lá, sou daqui.


A noite aos poucos chegou. Terencio, calado, escutava de vez em quando o som dos chifres do Verdasco raspando a parede. Só isso. As turbulências também diminuíam. Ele, só, um pouco antes de adormecer, chorou.


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