Um ensaio clínico com 160 idosos conduzido na Argentina mostrou que é possível evitar sintomas graves da Covid-19 com um tratamento feito à base de plasma rico em anticorpos contra o novo coronavírus.
Esse plasma foi obtido em doações de pessoas que já tinham tido a Covid-19 e que já se encontravam assintomáticas e com teste negativo para presença do vírus. Em cada doação (que pode ser repetida quinzenalmente), eram retirados 750 ml de plasma, o suficiente para tratar três pacientes.
Os voluntários tinham idade média de 77,2 anos e foram distribuídos aleatoriamente entre os grupos de teste (que recebeu o plasma) e placebo (que recebeu apenas solução salina). Para entrar no estudo era necessário ter 75 ou mais ou entre 65 e 74 anos com alguma comorbidade, como diabetes, hipertensão, obesidade e doença renal crônica.
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O estudo foi do tipo duplo-cego, no qual nem cientistas nem participantes sabiam quem recebeu cada tratamento, o que reduz a chance de haver viés de interpretação.
Segundo Fernando Polack, médico especialista em doenças infecciosas pediátricas que liderou o estudo, o resultado aponta que, com centenas de milhares de potenciais doadores disponíveis que já tiveram a doença, seria possível atender com tranquilidade a população de maior risco, como os mais idosos e aqueles com comorbidades. A infusão pode ser feita em ambulatório e leva menos de 1h30.
Até o momento, os estudos com base no chamado plasma convalescente não tinham demonstrado grande eficácia contra a Covid-19. A explicação para isso, diz Polack, é que a terapia funciona bem apenas nos primeiros dias da infecção.
No estudo, foram recrutados apenas pacientes com sintomas iniciados a menos de 72h, ou seja, ainda na primeira semana de infecção, considerando o período de incubação.
"Tratamentos para doenças respiratórias infecciosas geralmente funcionam melhor quando administrados antes, como no caso do Tamiflu contra a gripe. É possível conter a progressão, mas tem que ser rápido. No nosso estudo, de cada quatro pessoas tratadas prevenimos um caso grave. Daí a necessidade de focar naqueles que estão em maior risco."
O resultado foi a redução de 48% no risco de desenvolver um quadro respiratório grave (com respiração acelerada e baixa quantidade de oxigênio no sangue, por exemplo). Não foram observados efeitos colaterais do tratamento.
Quando o plasma era especialmente rico em anticorpos, o que geralmente acontece após infecções graves que levam o indivíduo à internação, a proteção era ainda maior, chegando a 73%.
Provavelmente por conta do tamanho pequeno da amostra (160 pessoas, e não milhares), outros resultados, como a redução de mortes (houve 2 no grupo de teste e 4 no placebo), não apresentaram a chamada significância estatística, quando é possível dizer, com um bom nível de confiança, que um efeito tem uma razão bem estabelecida.
A falta de evidência sobre redução de mortes faz com que essa estratégia ainda não gere tanto interesse, aponta Alexandre Barbosa, chefe do setor de infectologia da Unesp e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
"É um trabalho promissor, que mostrou o potencial de impedir o avanço da doença em pacientes de maior risco, mas essa não é a resposta definitiva para que o tratamento seja incorporado. Seria necessário observar a redução de óbitos, o que não aconteceu provavelmente por causa do tamanho pequeno da amostra."
Aumentar o tamanho da amostra não seria viável do ponto de vista logístico ou mesmo ético, argumentam os autores, já que o estudo demoraria muito mais para recrutar o total de pacientes e os possíveis benefícios dessa terapia permaneceriam desconhecidos por muito mais tempo.
"É um estudo pequeno, mas se olharmos para os desfechos secundários, como necessidade de suplementação de oxigênio, intubação, internação em UTI, morte, todos apontam para a mesma direção. Sabíamos que não seria possível identificar essas diferenças estatisticamente, mas é possível com base no que vimos supor que com menos casos graves haverá menos hospitalizações e menos mortes", diz Polack.
Os resultados do estudo, realizado pela Fundação Infant, da Argentina, foram publicados nesta quarta (6) no prestigioso periódico científico The New England Journal of Medicine.
Com um custo considerado baixo, de menos de R$ 1.000 por paciente, em comparação a outras intervenções, o plasma pode funcionar como uma "ponte" até a universalização da vacinação, argumenta Polack, que também foi o primeiro autor do estudo sobre segurança e eficácia da vacina da Pfizer.
Até mesmo as primeiras pessoas vacinadas poderiam participar da doação de anticorpos, já que os imunizantes tendem a produzir uma grande quantidade deles no organismo. Seria uma maneira de compartilhar os benefícios do privilégio de estar vacinado.
"Alternativas eficazes que podem ser disponibilizadas rapidamente para evitar a hospitalização de pacientes com Covid-19 são essenciais para salvar vidas porque levará algum tempo para que novas vacinas cheguem a todos que precisam", afirma Keith Klugman, diretor do programa de pneumonia na Fundação Bill & Melinda Gates, principal financiadora do estudo, em comunicado à imprensa.
Resta o desafio de apresentar proposta para governos, agências reguladoras, provedoras e seguradoras de saúde, mostrar essas vantagens e tentar implementar dentro das especificidades regulatórias de cada país, processo que pode demorar semanas ou meses.
Em comparação a outras propostas de tratamento para a Covid-19, como a hidroxicloroquina e a nitazoxanida, o médico argentino afirma que a solidez científica do plasma é maior e atestada pelo estudo duplo-cego controlado com placebo e pela publicação em uma boa revista científica com revisão por pares, como a NEJM.
"Alguns cientistas anunciaram resultados com evidências muito fracas ou inexistentes com o objetivo de obter atenção midiática, e muitas decisões foram guiadas pela ansiedade, e não por dados. Já no nosso estudo mostramos esse potencial de forma bem clara", afirma Polack.
Terapia com plasma reduz gravidade da Covid-19
Objetivo
Descobrir se o plasma doado por quem já foi infectado pelo novo coronavírus pode reduzir a gravidade da doença em pacientes idosos infectados
Ensaio
Foram recrutados 160 pacientes idosos infectados e que começaram a apresentar sintomas a menos de 72h do tratamento- 80 para o grupo de teste, que recebeu plasma rico em anticorpos contra o Sars-CoV-2- 80 que receberam para o grupo placebo, que recebeu solução salina
Resultado
Pacientes que receberam plasma tiveram probabilidade 48% menor de desenvolver quadros respiratórios graves
Poder dos anticorpos
Os cientistas também verificaram que quanto mais concentrados e potentes os anticorpos, melhor é o desempenho da terapia com o plasma
Aplicabilidade
Com um custo de US$ 186,25 (R$ 977,51) por paciente, os pesquisadores argentinos acreditam que essa pode ser uma alternativa de tratamento importante para prevenir quadros graves, e, consequentemente, internações e mortes