Joyce Favacho, 28, nem sabia que estava grávida quando, em 2019, foi parar no Hospital Santa Casa, em Belém do Pará. Na noite anterior, ela havia encontrado coágulos de sangue na calcinha e algo que, entre eles, parecia uma membrana transparente. De manhã, enquanto ainda sangrava, disse para a recepcionista do hospital que estava sofrendo um aborto, mas não teve o acolhimento esperado.
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Primeiro, precisou provar a gravidez. Depois, afirma ter sido tratada de forma brutal pelos profissionais que deveriam assisti-la, incluindo enfermeiros e técnicos de enfermagem. Quando foi realizar a curetagem, procedimento indicado para remover os restos do abortamento, não recebeu anestesia -prática que é considerada uma forma de violência obstétrica, afirma Mariana Prandini, pesquisadora de direitos da mulher e professora da Faculdade de Ciências Sociais da UFG (Universidade Federal de Goiás).
No Brasil, o aborto só é permitido em três situações -estupro, anencefalia do feto ou risco de vida para a mulher. Assim, há relatos de especialistas e dados que indicam que, mesmo nos casos legais ou até espontâneos, o sistema de saúde, pode se converter em um sistema de policiamento às mulheres.
Quando a jovem foi para a consulta, a médica pediu que ela tirasse a mão das partes íntimas, que usava para estancar o sangue incessante. Nesse momento, ela diz ter ouvido a auxiliar de limpeza reclamar de mulheres que "sempre vêm nessa situação para cá". "Foi aí que percebi que achavam que eu tinha provocado."
Ela foi encaminhada para a curetagem. Sob supervisão de uma médica mais experiente, foi atendida por cinco residentes. Quando a aspiração começou, Joyce diz que reclamou da dor intensa, e a supervisora informou aos alunos que eles haviam aplicado a anestesia errado, mas a operação iria continuar.
"Chorei durante o procedimento. Não tive tempo de sentir que tinha um bebê e o perdi, mas me marcou o sentimento de trauma pela forma como fui tratada", diz.
Em uma pesquisa publicada em um livro em 2022, Prandini categoriza as formas de violência obstétrica em casos de abortamento em violência física; omissão nos padrões de qualidade do atendimento; ameaças de criminalização ou efetiva criminalização; estigma e discriminação; e gaslighting (termo usado para quando a vítima, geralmente mulher, é tida como "louca" ou mentirosa).
A geógrafa Rebecca, 34 (o sobrenome foi omitido para preservar a identidade da personagem) sofreu algumas. Ela soube desde o início de sua gestação, em 2016, que tinha uma alta possibilidade de abortamento espontâneo. Quando começou a perceber um sangramento mais forte que o normal e cólicas, foi ao Hospital Central da Santa Casa de São Paulo.
A médica que a atendeu, diz, perguntou repetidamente "o que ela tomou". Ela disse que não havia tomado nada, e pediu um remédio para a dor que sentia. Rebecca então ouviu a médica dizer que não daria, pois se ela tivesse tomado algo e consumisse o remédio, poderia morrer.
"Comecei a gritar alto por ajuda até chegar um médico que me reconheceu de um atendimento anterior. Ele sentou comigo, pegou minha mão, pediu desculpa e explicou os procedimentos", diz.
Mas após passar pelo exame de toque e ser internada, Rebecca teve a veia estourada pela enfermeira que aplicava o soro –mesmo sob os protestos de que sentia dor. Depois, passou três horas sem tomar um remédio para estancar seu sangramento até o médico visitá-la e confirmar um quadro anêmico.
"Os médicos homens foram muito solícitos. É horrível falar isso, mas as mulheres não", lamenta Rebecca.
Tanto Rebecca quanto Joyce afirmam que não denunciaram os hospitais por estarem fragilizadas no momento e com medo de serem revitimizadas.
Procurada, a Santa Casa de São Paulo afirma, em nota, que "mesmo que ocorra uma suspeita de abortamento [ilegal] de forma insegura, a equipe multiprofissional é orientada a realizar o atendimento de forma profissional e imparcial, sem julgamentos".
A Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, que gerencia o Hospital Santa Casa, disse que "o acolhimento da paciente [Joyce] seguiu todas as diretrizes legais do Ministério da Saúde, sendo realizada total assistência da equipe multiprofissional do hospital".
O misoprostol, indicado inicialmente para tratamento de úlcera, é usado para abortos legais no SUS (Sistema Único de Saúde). Antes dos remédios abortivos, as mulheres recorriam a métodos físicos, como inserir objetos no útero. Essas práticas, porém, denunciam as tentativas de encerrar a gravidez.
"Quando não é evidente o que ocorreu, começa-se um processo de tortura. Os relatos nos mostram isso", diz Prandini.
A Defensoria Pública de São Paulo relata o caso de A.P.L., 19, presa em flagrante após sofrer um aborto no banheiro de seu trabalho. O policial, no depoimento, disse que fez o flagrante no hospital, após ouvi-la dizer às enfermeiras que teria sofrido um aborto. Ela permaneceu internada com escolta policial até pagar fiança no valor de R$ 1.500 –quase o dobro de seu salário na época.
A enfermeira do caso falou em depoimento que A.P.L. passou mal e sentiu vontade de ir ao banheiro e lá sentiu que algo saindo de dentro. Naquele momento, ela não sabia que se tratava de um feto.
A jovem negava saber que estava grávida e nenhum exame pericial comprovou que o aborto foi provocado. Apesar disso, ela foi denunciada em um processo que, desde a sua prisão em 2013 até o cumprimento final das condições impostas pelo juiz, durou quatro anos.
"A criminalização do aborto vai misturar o espaço da polícia com a própria saúde. E vai fazer com que mulheres que praticam aborto ilegal ou têm um aborto espontâneo comecem a se afastar da saúde por medo de violências ou de serem denunciadas para o judiciário, mesmo não tendo nenhuma prova", diz a defensora pública Paula Sant'Anna Machado de Souza.
Segundo ela, isso acontece porque o aborto ainda é tratado "nessa zona mista de crime, com culpabilização da vítima" por profissionais que veem o abortamento pelo viés da moralidade e da religião.
Em 2019, a professora Nathalye de Almeida Duarte, 31, chegou ao Hospital da Mulher Mariska Ribeiro, no Rio de Janeiro, com manchas de sangue na perna. Ela estava grávida do namoro que tinha há cinco anos.
No hospital, a enfermeira pediu para que ela fosse ao banheiro para verificar se seu sangue era "de verdade".
Nathalye chora quando conta que precisou abaixar o short para a enfermeira fiscalizá-la. "Ouvi ela falando para a colega, 'eu não sei o que essa filha da puta fez'. Me passou remédio e mandou eu ir para casa, dizendo que se o sangramento continuasse era para voltar".
Ela passou três dias indo ao hospital sem ser atendida, até expelir o feto no banheiro da unidade de saúde. "Dizia que estava sentindo dor, mas para as enfermeiras, eu tinha causado aquilo", diz.
A direção do Hospital da Mulher Mariska Ribeiro (HMMR) diz que não encontrou nenhum registro deste caso com os dados fornecidos e que "o HMMR é uma unidade preparada para o cuidado humanizado à mulher". Em nota, afirmam que as denúncias são feitas por meio da Central 1746, canal de ouvidoria da Prefeitura do Rio, respeitando o sigilo da denunciante.
De acordo com a Constituição e a legislação do SUS (Sistema Único de Saúde), os profissionais de saúde não podem quebrar o sigilo médico para fazer denúncias. Em relação à violência obstétrica, porém, Sant'anna diz que ainda não há consenso no judiciário sobre o que chama de "violência obstétrica, verbal, moral".
A violência pode ser denunciada na ouvidoria do hospital; na ouvidoria da Secretaria de Saúde Municipal, se for um serviço municipal, ou do Estado, se for um serviço estadual; no Ministério Público Estadual e no Ministério Público Federal; e se a mulher desejar uma ação individual, isso pode ser feito em uma Defensoria Pública, caso não possa pagar uma advogada.
O CFM (Conselho Federal de Medicina) afirma que não tece comentários sobre casos concretos, mas que denúncias podem ser feitas à autarquia e, se forem constatadas irregularidades, é aberto inquérito contra o acusado.
Em nota, o conselho alega atuar para fortalecer "a boa prática médica e o respeito à ética no exercício da medicina" e tratar o tema da relação médico e paciente em eventos organizados, "em um programa de educação continuada, e em campanha contínua de sensibilização dos profissionais e da população com relação aos compromissos éticos e técnicos no exercício da medicina".