Milton Cruz ainda não digeriu o que aconteceu em 24 de março de 2016. Naquele dia, após o treino, ainda no gramado, ele foi demitido do São Paulo após quase 23 anos de serviços prestados. No comando do Náutico, equipe que assumiu há um mês, o agora técnico continua bastante magoado pela maneira como foi tratado pelo presidente são-paulino Carlos Augusto de Barros e Silva, o Leco.
Em entrevista exclusiva ao Estado, ele afirmou que "foi vergonhoso o que fizeram comigo" e que foi vítima de "jogo político." Confira a conversa com o treinador:
Nos tempos do São Paulo, você sempre disse que não queria ser treinador. O que mudou para aceitar o convite do Náutico?
Eu tinha uma comodidade no São Paulo, estava perto de casa, era reconhecido pelo meu trabalho, virei uma referência. Isso me dava uma segurança para não sair. Aí aconteceu do Leco entrar como presidente e me tirar. Mas, no período que fiquei no São Paulo, os técnicos... Muricy, Leão, Carpegiani, Paulo Autuori, Osorio, Nelsinho Baptista... Sempre falaram para eu virar treinador, que tinha capacidade. Mas, até por respeito, falava que não queria. Não seria legal estar no clube e falar que queria ser técnico com outro profissional chegando. (Os presidentes) Juvenal (Juvêncio) e Marcelo (Portugal Gouvêa) também não queriam, defendiam que eu era mais importante do que o treinador, porque fazia contratações, promovia os garotos da base. Falaram que se me colocassem como treinador bastava três, quatro derrotas para os torcedores pedirem minha demissão. Então, depois que saí do São Paulo, fiquei um tempo fora do Brasil, estive com o Zidane no Real Madrid, com o Blanc no PSG, com o Simeone no Atlético (de Madrid), fiquei no Barcelona também e depois passei um período com o Osorio na seleção mexicana. No final do ano passado, foram aparecendo convites, o Náutico estava atrás de mim. Tive oferta também da China, mas eu ainda não tinha licença de treinador. Minha preferência era ir para fora porque você tem mais tranquilidade para desenvolver o trabalho. Neste mesmo período, minha mãe ficou doente, acabou falecendo e, quando eu estava chateado em casa, o pessoal do Náutico me procurou novamente, resolvi aceitar e estou feliz pelo trabalho já estar sendo reconhecido.
Você já digeriu a demissão do São Paulo?
Foram quase 23 anos como funcionário, sem contar o tempo como jogador. Não digeri porque me demitiram em 30 segundos. Tenho uma história no clube. Não estava no São Paulo havia dois dias. Não foi legal do jeito que foi feito. Poderia me demitir, não tem problema, ele (Leco) pode escolher com quem trabalhar. Não aceitei e não aceito até hoje. Isso me magoou muito. Fiz muitas coisas pelo São Paulo. Ganhei títulos, conquistas importantes, Libertadores, Mundial, quatro Brasileiros... Ajudei na montagem do time campeão do mundo. Revelei jogadores, Kaká, Lucas, Hernanes, Breno, Tardelli, Rodrigo Caio... Fiquei muito magoado pela maneira que foi.
Foi uma decisão política?
Sim, foi ciúmes da minha relação com o Abílio (Diniz, opositor do Leco), com o Juvenal... Sempre dava minha cara para bater quando o São Paulo precisava. Coloquei o time duas vezes na Libertadores. Foi vergonhoso o que fizeram comigo. Hoje saio na rua e todo mundo fala, são-paulino, corintiano, palmeirense, que foi uma sacanagem o que fizeram. Era só me chamar e agradecer. Não me chamar depois de um treino, do lado do campo e me mandar embora. Ainda mais um dirigente que ficou três dias no clube (Luiz Antônio da Cunha). O Leco não teve coragem de me demitir. Nem o Gustavo (Oliveira, ex-gerente) nem o Ataíde (Gil Guerreiro, ex-vice de futebol). O Leco estava sentado no banco, vendo o cara falar comigo. Nem o Bauza (que era o treinador) sabia. Cheguei no vestiário e ele já queria conversar sobre o treino do dia seguinte e eu falei que havia sido demitido. Foi desta maneira.
Você está processando judicialmente o São Paulo?
Fiquei quase 23 anos no São Paulo e não entendo nada de legislação. Os meus advogados vão analisar se tudo foi pago corretamente. O que entendo é de futebol. Eles vão fazer uma revisão de todo o período que trabalhei no clube. Isso não é contra o São Paulo, sou muito grato por tudo que o clube me deu. Nunca vou esquecer. Estou fazendo isso pelas pessoas que estão lá no momento. Não tiveram dignidade na hora de me mandar embora.
Você recebeu proposta do Palmeiras?
Tive sondagem. Eles me queriam para o lugar do Alberto (Valentim, ex-auxiliar), com o Cuca. Mas achei que era muito cedo, tinha acabado de sair do São Paulo. Estava em um momento ruim.
Como é o Milton treinador?
Tenho um pouco de cada. Não sou um treinador de um único esquema tático, procuro estudar o adversário. Sempre comentei com o Osorio que o bom treinador é o que sabe estudar o adversário, sabe escalar e sabe mexer. Procuro ver e neutralizar os pontos fortes. Tenho de colocar em campo um time equilibrado. Depois você vai avaliando suas ações, se vai colocar mais pra frente, mais pra trás. Aprendi muito com todos os treinadores com quem trabalhei e procurar usar isso.
Como é trabalhar em um clube que, diferentemente do São Paulo, não é possível contratar todos os jogadores que deseja?
Estou trabalhado com os jogadores que estavam aqui, não pedi ainda nenhuma contratação. A situação do Náutico é diferente do São Paulo. Você precisa analisar o mercado, encontrar jogadores baratos, que se encaixam no preço. Não é fácil. Estamos mapeando. Temos de contratar com os pés no chão, tentar reforçar o time para o Campeonato Brasileiro (da Série B). Eles esperam isso de mim, porque sou um cara que conhece o mercado.
É possível recolocar o Náutico na Série A?
O Náutico bateu na trave nos últimos dois anos. A Série B é muito complicada. Tem Inter, Goiás, Figueirense, Santa Cruz, Ceará... Vamos trabalhar para conseguir o acesso, são muitas equipes brigando por essas quatro vagas.