Saltos impossivelmente altos sustentam figuras cheias de brilho, com maquiagem colorida e cabelos volumosos –mas você não está numa balada do centro de São Paulo. Tatuagens reafirmam uma luta que é cantada em letras sobre emancipação –mas você tampouco está num festival como o Lollapalooza. Na verdade, é possível ver tudo isso sem sair do sofá.
Antes restritas ao público LGBTQIA+, figuras como Pabllo Vittar, Gloria Groove e Linn da Quebrada agora têm estourado essa bolha e escancarado a sua versatilidade ao ocupar espaços que vão muito além da indústria fonográfica.
Basta acessar a HBO Max a partir desta quinta, por exemplo, para ver Pabllo no comando do reality Queen Stars, que põe 20 drags, de todos os cantos do Brasil, para competir por um contrato com uma gravadora. Ou então visitar o YouTube para relembrar a passagem vitoriosa de Gloria no Show dos Famosos, da Globo, há três meses. E, ainda, ver Linn –ou Lina– todas as noites no Big Brother Brasil, enquanto um filme que ela estrela, "Vale Night", é exibido nos cinemas.
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Num movimento recente, artistas drags, trans e travestis têm desafiado preconceitos e investido em carreiras paralelas à música para ganhar projeção e alcançar públicos que dificilmente buscariam, de forma espontânea, suas canções nas plataformas.
É uma tendência que tem rendido frutos. Basta ver a presença constante de Linn nos assuntos mais comentados das redes sociais nos últimos dois meses ou dar uma olhada em seu Instagram, que saltou de pouco mais de 300 mil seguidores para 2,6 milhões em dois meses de BBB.
Urias, cantora que também trilha carreira de modelo, diz que a presença de Linn no reality da Globo tem mostrado às pessoas não só a sua arte, mas, mais importante, que mulheres trans e travestis são inteligentes. Não são raros, no Twitter, comentários elogiosos a sua oratória e seus discursos bem construídos.
Antes do BBB e de "Vale Night", Linn já testara a elasticidade de seu talento em "Segunda Chamada", série do mesmo canal em que ajudou muitos a entenderem a vida de pessoas trans e travestis num país como o Brasil, o que mais mata os "T" de LGBTQIA+.
Essas aventuras no além-música não só turbinam a carreira dessas artistas como têm uma função didática –em vez de pregar para convertidos, elas estão levando sua realidade para gente sem muita afinidade com as pautas LGBTQIA+, cumprindo um papel de conscientização e, num ciclo, aumentando a disposição das pessoas de consumirem sua música.
"Todo preconceito vem de um pré-conceito, de não saber o que é, e acho que um reality como o Queen Stars entra na casa das pessoas de forma didática também, para mostrar o quão talentosa e o quão plural é a nossa comunidade", diz Pabllo Vittar, sobre o novo programa que apresenta ao lado de Luísa Sonza. "É o tipo de atração que fura a bolha porque atrai toda a família –afinal, quem não gosta de ver gente talentosa?"
Segundo ela, embora hoje o público esteja menos resistente em relação ao trabalho de drag queens ou cantoras trans, ainda não é fácil entrar no mainstream como fazem os sertanejos. Pabllo, ao lado de Gloria Groove, é uma das poucas artistas da cena que conseguiram se firmar como presença constante na TV e em variadas trilhas sonoras.
Vale dizer que, por questões físicas, estéticas ou comportamentais, artistas LGBTQIA+ com "maior passabilidade", ou seja, que tenham certa facilidade em se dissociar da sigla em determinadas ocasiões, já conseguiram alcançar o mainstream há tempos.
Basta ver o sucesso de Anitta e o que Renato Russo fazia há três décadas –ou o de Lady Gaga e Elton John, num exemplo do exterior. Para drags e trans, no entanto, não empunhar uma bandeira, mesmo quando elas não querem, é muito mais complicado.
Mas elas têm mudado esse cenário ao extrapolar a música pop com influência americana à qual a arte LGBTQIA+ é há anos relegada. A própria ascensão das drags no Brasil deriva da ausência de divas pop importadas dos Estados Unidos na última década, afirma o pesquisador Wellthon Leal, que estuda a formação da identidade gay a partir da música.
"A grande sacada da Pabllo foi justamente criar um pop brasileiro, o que fez com que ela conseguisse se solidificar além da bolha", diz ele, sobre a fusão que a drag promove do pop com o forró, o arrocha e o tecnobrega. "A Gloria veio depois disso, bebendo de um estilo musical do Sudeste, de uma música da periferia."
Gloria Groove, nome artístico de Daniel Garcia, concorda que seu flerte constante com o rap e o trap impulsionou sua carreira e, em especial, seu último disco, "Lady Leste", lançado no mês passado, que já pode ser considerado seu maior. Isso em parte por sua presença no Show dos Famosos e no reality Nasce uma Rainha, que ela apresentou na Netflix, e também por ser acompanhado de clipes mais cinematográficos, em que mostrou seu lado de ator.
"Por sermos LGBTQIA+, temos que provar o nosso valor duas, três vezes mais. Temos que provar que merecemos credibilidade e merecemos ocupar espaços", afirma a voz de hits como "Bumbum de Ouro" e "A Queda". "Temos que acrescentar um número de funções na nossa carreira e sermos versáteis."
Pabllo, Urias, Linn e Gloria se juntam, nessa tendência multiplataforma, a Liniker, autora de canções como "Baby 95" e "Zero", que protagonizou a série de drama "Manhãs de Setembro", do Amazon Prime Video, em junho.
Esse movimento ainda desconstrói imagens pejorativas que o público guarda de drags e trans, algo que já vem acontecendo há alguns anos. Basta lembrar o lugar de chacota que nomes como Vera Verão ocupavam e a maior seriedade com a qual essas artistas são tratadas hoje. A indústria –musical e audiovisual– agora tem interesse inegável por elas, e descobriu a possibilidade de lucro que trazem, com o famoso "pink money".
Existe hoje uma verdadeira fábrica de reality shows drags. O Queen Stars e o Nasce uma Rainha se juntam a Drag Me as a Queen, do E!, e ao Caravana das Drags, que levará Xuxa ao Amazon Prime Video. Lá fora, o streaming tem tentado emplacar um novo RuPaul's Drag Race, competição que impulsionou as drags há 13 anos e vem ganhando desde então uma avalanche de derivados.
Um deles é o Queen of the Universe, outro programa de calouros, que teve, em dezembro, uma brasileira como vencedora –Grag Queen, que arrematou R$ 1,2 milhão para impulsionar sua carreira.
"Se as pessoas não estiverem preparadas, vão ter que se preparar logo, porque as drags estão saindo do papel cômico, de ridicularização. A gente vai cantar sertanejo, rock, trap e o que quisermos. Se artistas que não são drags podem fazer de tudo, por que nós não podemos?", questiona a gaúcha de Canela.
Enquanto o brilho das drags tem encantado o mundo, no entanto, artistas trans encontram mais resistência por parte do público e da indústria. Isso foi escancarado pelos inúmeros episódios de transfobia vividos por Linn no BBB, com participantes se referindo a ela como ele, mesmo que o pronome correto esteja tatuado em sua testa.
Enquanto Pabllo já teve "K.O." e "Corpo Sensual" no topo das mais tocadas do Spotify e Gloria acaba de emplacar "Vermelho" na nona posição, a única vez em que Urias esteve no ranking foi para ocupar o 61º lugar. Outras cantoras trans, como Linn e Pepita, nunca apareceram na parada.
Segundo Leal, o pesquisador, a transfobia que estrutura a sociedade, na qual também estão inclusos os grandes empresários e gravadoras, é um dos fatores que impedem as cantoras trans de alçar voos mais altos. Prova disso é que, enquanto há reality shows para criar novas estrelas drags, as trans não entram facilmente em programas como o The Voice Brasil, que até hoje só teve uma pessoa da letra "T" no elenco, Diva Menner.
"Minha maior dificuldade no início da carreira era me manter viva. Quando você não tem essa preocupação, consegue fazer seu trabalho em paz", diz Urias. "Independentemente de andar de mãos dadas, ter o casamento no papel ou adotar uma criança, conquistas já alcançadas pelos LGBTQIA+, as trans ainda estão lutando para serem respeitadas como gente e serem chamadas pelo nome certo."
E vai além. Ela afirma que, embora recortes sociais devam ser considerados, já que "quanto mais minoria você é, mais você tem que se provar", também é preciso tomar cuidado com eles. "Separam a gente com o nome 'artistas trans', aí quem não é trans já não vai querer ouvir", ela diz.
"Não querem saber do meu trabalho só por causa do rótulo que põem em mim." Urias diz ainda que o preconceito parte até da própria comunidade.
Outro elemento que as prejudica é a diferença entre suas composições. Enquanto Pabllo diz que está "triste com tesão", algo com que muita gente se identifica, Urias canta sobre temas mais individuais, dizendo que a "chamaram de suja, louca e sem moral", mas que "vão ter que me engolir", afinal, "foda-se a sua crença".
"São letras que geram estranhamento, e há uma questão de higienização, na verdade, porque o palavrão tem um peso maior para elas", diz Leal.
Urias não é a única. Pepita, que se inspirou no hino do Flamengo para criar seu primeiro hit, cantando que "uma vez piranha, piranha até morrer", tem letras cifradas para quem não compreende o pajubá, o dialeto LGBTQIA+. É o caso de "Chama a Beleza", que, embora não tenha uma sonoridade tão diferente de qualquer outra música pop, questiona se o ouvinte "já fez o picumã" –isto é, o cabelo.
É o mesmo dialeto que detonou críticas de Jair Bolsonaro quando ocupou as páginas do Enem. Segundo o pesquisador, isso é uma evidência de que, não importa o quanto o conservadorismo cresça, a cena LGBTQIA+ vai florescer justamente como resistência a um governo de viés homofóbico, como prova a sincronia entre a onda drag com o levante direitista no país. É algo semelhante ao surgimento da tropicália na ditadura militar.
"A gente tem força para bater o pé no chão e falar 'vocês não querem a gente aqui, mas a gente cagou'. Tentamos nos encaixar e ser aceitos a vida inteira, mas chega um ponto em que você não quer mais ser aceito. Eu quero é ser respeitada", diz Urias. "A cara da cultura somos nós, e não as mentes retrógradas que comandam o país", acrescenta Gloria Groove, hoje abraçada na música, na TV e no streaming.