De um lado da linha telefônica, profissionais de saúde tentam explicar o quadro clínico de um paciente que está em estado grave. Do outro, familiares tentam entender qual é a real situação de seus entes queridos, infectados pelo coronavírus.
Diariamente, médicos pelo país lidam com a ansiedade e a angústia das famílias com parentes internados com Covid-19. O contato, antes feito pessoalmente, passou a ser realizado por telefone devido à necessidade de isolamento.
Ficar ao menos uma hora no telefone em contato com as famílias é parte da rotina de Daniel Joelson, médico intensivista do Hospital das Clínicas da USP e responsável por 13 leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).
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São cerca de 10 minutos com cada pessoa no telefone. Além de informações técnicas, transformadas em uma linguagem fácil, o trabalho também é de acolhimento. "A gente acaba criando um vínculo com a família", conta.
Do início da pandemia até março deste ano, o HC da USP atendeu cerca de 6.300 casos de Covid-19, e 31% desses pacientes morreram.
Lá os médicos encontraram outras formas de tornar esse vínculo mais humano. O hospital disponibilizou tablets para que a família possa ver o paciente sempre que ele estiver acordado e falar com ele por meio de videochamadas.
O vídeo também é utilizado quando é necessário mostrar a real situação dos pacientes. Mesmo a descrição cuidadosa ao lado de comentários sobre a evolução do caso nem sempre são suficientes para acalmar as famílias. Videochamadas desse tipo, porém, são incomuns.
"Muitas vezes nós usamos o vídeo para mostrar as máquinas e o ambiente da UTI para eles entenderem a gravidade da situação. Nós tentamos humanizar o máximo possível, mas nada chega perto do que estão vivendo", diz Joelson.
Desde que os contatos deixaram de ser feitos pessoalmente, os médicos passaram a enfrentar desafios, como estabelecer uma conexão entre a rede de apoio e o paciente, passar com clareza todas as informações e controlar a ansiedade da família por meio do acolhimento.
Em pouco mais de um ano de pandemia, o médico cardiologista Carlos Eduardo Favatto, 41, passou por três hospitais e agora atende no Hospital de Campanha em Barradas. Seus pacientes são majoritariamente de alta complexidade, mas ele também é um dos responsáveis por atualizar o estado de saúde dos pacientes com quadros leves. A situação dos casos da enfermaria é informada em boletins enviados pelo WhatsApp; já a dos graves, com notícias quase sempre ruins, é sempre por telefone.
"Muitas vezes nós passamos as informações e quando voltamos ao trabalho parece que estamos carregando um burro nas costas. Não é fácil para o profissional da saúde conseguir passar uma informação pesada e negativa de uma forma humana e educada", conta.
O contato só muda em casos de óbitos. Neste caso, sua equipe dá a notícia pessoalmente. "Ninguém quer falar que alguém morreu. Não é fácil, não tem poucas palavras pra dizer isso. É difícil", diz Favatto.
A conversa com os familiares é ainda pior quando o paciente é jovem. "É muito, muito ruim quando damos notícia de mortes de jovens. A gente já passou por umas situações terríveis ali", relembra Joelson.
Reportagem da Folha mostrou que a proporção de mortes de jovens cresceu em São Paulo. No início de janeiro, as pessoas entre 20 e 59 anos representavam 20% das mortess; em março, ela subiu para 28%.
Por parte dos pacientes, muitas vezes as famílias elegem um porta-voz para o contato com os médicos.
Na família de Lucas Gregório, 26, ele e seu irmão tinham esse papel e criaram uma rotina para conciliar todas ligações. Os pais e a avó tiveram Covid-19 e ficaram internados. Com a apreensão pelo estado de saúde dos pais, deixaram a cargo dos tios as notícias da avó.
"A nossa cabeça parava. A gente não conseguia pensar em mais nada para se preparar para ouvir qualquer coisa que pudesse vir do outro lado da linha", conta.
Quando o pai começou a responder ao tratamento, a voz da médica mudou. As notícias eram passadas com segurança e entusiasmo.
Mas no mesmo dia em que o pai foi extubado, a avó faleceu. Poucas horas depois, a mãe foi intubada. "Nós não tínhamos tempo de processar notícias boas ou ruins", conta.
Nesse momento, a fala da médica o tranquilizou. "Eu nem imagino o que vocês estão passando, mas eu quero te dizer que seu pai está melhorando. Se tem alguma coisa para te dar esperança é isso", disse ela, segundo Gregório.
O recente aumento no número de casos gerou uma sobrecarga no sistema de saúde e um consequente desgaste nos profissionais da saúde. "Nós estamos exaustos e só está piorando", diz Daniel Joelson. Ele e sua equipe se preparam para trabalhar ao menos mais seis meses na mesma intensidade. A falta de perspectiva de mudança no cenário do país com a demora da vacinação os desmotiva.
"A sensação é de enxugar gelo. É uma sensação de impotência, de desespero", completa.