Como toda figura do imaginário, também o Curupira não possui uma origem completamente exata, sabe-se que já no século XVI, o garoto de cabelos vermelhos e pés para trás, já era conhecido como protetor das matas contra todos aqueles que pretendiam depredar fauna e flora.
Originalmente, a palavra Curupira vem da língua Tupi e significa Diabo. Entre os indígenas o Diabo, ainda não possuía a conotação cristã, portanto, a palavra diabo significava um ente fantástico, um espírito arredio que nesse caso, protegia as matas.
Na civilização grega, os demônios são seres divinos ou semelhantes aos deuses devido a um determinado poder. Posteriormente, a palavra passou a designar os espíritos inferiores e, por fim, os espíritos maus. Na demonologia cristã, os demônios são anjos que traíram a própria natureza, mas que não são maus nem na origem e nem na sua natureza, pois se fossem naturalmente maus não teriam nascido do Bem e nem teriam se separado dos anjos bons, de modo que se houve uma separação é por que sua origem é boa.
O Curupira de pele escura, dentes verdes, corpo coberto por pelos é um gênio da floresta que além de despistar a todos devido aos seus pés estarem as avessas, ainda produz silvos e sons que desnorteiam seus inimigos.
Os ruídos misteriosos que vem da mata são por ele produzidos e se um caçador malvado encontrá-lo no caminho e se apenas o encontro não o matar, acabará enlouquecido devido a tanta traquinagem de Curupira.
Quando imita gritos humanos, acaba fazendo com que as pessoas se percam na floresta. Os seringueiros e os caçadores que só caçam para comer são por ele tolerados, mesmo assim, esses caçadores e trabalhadores costumam ofertar pinga e fumo ao Curupira para que este não os incomode com suas travessuras.
O belo protetor das plantas e dos animais, quando percebe uma pessoa predadora usa de suas artimanhas para iludir tais como gritos, assobios, gemidos e devido a sua incrível rapidez, tal qual o vento, ele se esconde e é capaz de se fazer acreditar que esteja aqui e ali ao mesmo tempo.
Às vezes, o caçador é levado a pensar que Curupira é um animal ou uma ave, só que ao ir atrás dele acaba irremediavelmente perdido na floresta.
Ao se aproximar uma tempestade, velozmente, Curupira vai alcançando cada uma das árvores para verificar se estas estão firmes ou se correm o risco de queda, dessa maneira busca proteger os animais para que esses não fiquem próximos do que poderia ser sua tragédia.
Não gosta de ser visto pelas pessoas, mas todos sabem que ele adora descansar sob os mangueirais, de modo que se você tiver a curiosidade em conhecê-lo e não tiver má intenção para com as plantas e animais selvagens, bem à tardinha, naquela horinha da preguiça gostosa, basta se colocar bem quietinho e escondido para avistá-lo ali.
Se for criança deverá tomar cuidado, pois Curupira leva para si as crianças e após sete anos de ensinamentos, as devolve para seus legítimos pais que se encantam com o respeito e sabedoria com que agora lidam com a natureza.
Os índios costumam contar uma interessante história que ilustra o comportamento de Curupira, sua honestidade e coerência diante de suas convicções; sua inocência, o que é diferente de ingenuidade, esta é um descuido em relação à voz dos instintos, enquanto que aquela é a leveza de não ser culpado e de nem se quer buscar a culpa nos outros contra a "esperteza", aquele desejo de poder que busca tirar vantagem e que é o adubo de toda corrupção. Esta é a história:
Estava o Curupira andando pela floresta, quando encontrou um índio caçador que dormia profundamente. Como estava com muita fome, cismou em comer o coração do homem. Assim, fez com que ele acordasse.
O caçador levou um susto, mas como ele era muito controlado, fingiu que não estava com medo. O Curupira disse-lhe:
- Quero um pedaço de seu coração!
O Caçador, que era muito esperto, lembrando-se que havia atirado num macaco, entregou ao Curupira um pedaço do coração do macaco. O Curupira provou, gostou e quis comer tudo.
- Quero mais! Quero o resto! - pediu ele. O Caçador entregou-lhe o que havia sobrado, mas, em troca, exigiu um pedaço do coração do Curupira.
- Fiz sua vontade, não fiz? Agora você deve dar-me em pagamento um pedaço de seu coração, disse ele.
O Curupira não era muito esperto e acreditou que o Caçador havia arrancado o próprio coração, sem ter sofrido nenhuma dor e sem haver morrido.
- Está certo, respondeu o Curupira, empreste-me sua faca.
O Caçador entregou-lhe a faca e afastou-se o mais que pôde, temendo levar uma facada.
O Curupira, porém, estava sendo sincero. Enterrou a faca no próprio peito e tombou, sem vida.
O Caçador não esperou mais, disparou pela floresta com tal velocidade que deixaria para trás os bichos mais velozes...
Quando chegou à aldeia, estava com a língua de fora e prometeu a si mesmo não voltar nunca mais à floresta. Pensou: "Desta escapei. Noutra é que não caio"
Durante um ano, o índio não quis saber de entrar na mata. Quando lhe perguntavam por que não saía mais da aldeia, ele se desculpava, dizendo estar doente.
O Caçador tinha uma filha que era muito vaidosa. Como haveria uma festa dentro de poucos dias, ela pediu ao pai um colar diferente de todos os que ela já tinha visto.
O índio, pai dedicado, começou a pensar num modo de satisfazer o desejo da filha. Lembrou-se, então, dos dentes verdes do Curupira. Daria um bonito colar, sem dúvida.
Partiu para a floresta e procurou o lugar onde o gênio havia morrido. Depois de algumas voltas, deu com o esqueleto meio encoberto pelo mato. Os dentes verdes brilhavam ao sol, parecendo esmeraldas.
Conseguindo vencer o receio, apanhou o crânio do Curupira e começou a bater com ele no tronco de uma árvore, para que se despedaçasse e soltasse os dentes.
Imagine a sua surpresa quando, de repente, viu o Curupira voltar à vida! Ali estava ele, exatamente como antes, parecendo que nada havia acontecido!
Por sorte, o Curupira acreditou que o Caçador o ressuscitara de propósito e ficou todo contente:
- Muito obrigado! Você devolveu-me a vida e não sei como lhe agradecer!
O índio percebeu que estava salvo e respondeu que o Curupira não tinha nada que agradecer, mas ele insistia em demonstrar sua gratidão. Pensou um pouco e disse:
- Tome este arco e esta flecha. São mágicos. Basta que você olhe para a ave ou animal que deseja caçar e atire. A flecha não errará o alvo. Nunca mais lhe faltará caça. Mas, agora, ouça bem: jamais aponte para uma ave ou animal que esteja em bando, pois você seria atacado e despedaçado pelos companheiros dele. Entendeu?
O índio disse que sim e desde aquele momento não mais lhe faltou caça. Era só atirar a flecha e zás! O bicho caía. Tornou-se o maior caçador de sua tribo. Por onde passava, era olhado com respeito e admiração.
Um dia, ele estava caçando com outros companheiros que não tinham mais palavras para elogiá-lo. O índio sentiu-se tão importante que, ao ver um bando de pássaros que se aproximava, esqueceu-se da recomendação do Curupira e atirou...
Matou somente um pássaro e, como o Curupira avisara, foi atacado pelo bando enlouquecido pela perda do companheiro.
De seus amigos, não ficou um: dispararam pela floresta, deixando-o entregue à própria sorte.
O pobre índio foi estraçalhado pelos pássaros. A cabeça estava num lugar, um braço no outro, uma perna aqui, outra longe... O Curupira ficou com pena dele. Arranjou cera e acendeu um fogo para derretê-la. Depois recolheu os pedaços do Caçador e colou-os com a cera. O índio voltou à vida e levantou-se:
- Muito obrigado! Não sei como lhe agradecer!
- Não tem o que agradecer, respondeu o Curupira, mas preste atenção. Esta foi a primeira e ú1tima vez que pude salvá-lo! Não beba, nem coma nada que esteja quente! Se o fizer, a cera se derreterá e você também!
Durante muito tempo, o índio levou uma vida normal. Ninguém sabia do acontecido. Um dia, porém, sua mulher lhe serviu uma comida quente e apetitosa, tão apetitosa que o índio nem se lembrou que a cera poderia derreter-se. Engoliu a comida e pronto! Não só a cera se derreteu, mas também o próprio índio. (1)
Essa história guarda em si mesma, vários aspectos de Curupira que se aproximam dos deuses da vegetação, como por exemplo, Dioniso que também fora desmembrado e depois juntado, significando que é uma entidade consagrada e iniciada nos mistérios.
Por outro lado, Curupira tem o mesmo poder para com os homens, desmembrar e juntar, devolvendo-lhes a energia vital. É um deus da vegetação com o poder da caça e do rejuvenescimento.
Curupira possui os pés para trás e os calcanhares para frente, de modo que suas pegadas ficam na direção oposta da qual realmente veio.
Enquanto as pernas criam os laços sociais por que são elas que nos levam aqui e ali, os pés simbolizam o senhor e a chave dos laços sociais por que eles estão diretamente ligados ao chão, ao princípio de realidade e de concretude.
Os pés para trás representa uma habilidade maliciosa em se esquivar para em seguida, fazer sucumbir o inimigo das matas.
Curupira possui dentes verdes, como se fossem esmeraldas.
Os dentes simbolizam a energia vital, uma força agressiva de defesa que abre caminho, bem como representam a assimilação do alimento, ou, do conhecimento que nutre.
O verde situado entre o amarelo e o azul é o mediador entre o calor e o frio, entre o alto e o baixo. Significa a força nutridora da natureza, sua capacidade de regeneração e de sua refrescância.
A pedra de esmeralda é símbolo de fertilidade e de poder regenerador para muitos povos indígenas. Para os alquimistas era a pedra de Hermes ou Mercúrio. Hermes que também usou o artifício de fazer pegadas as avessas para escapar de represálias e para enganar.
Na tradição hermética se afirma que durante a queda de Lúcifer, uma esmeralda tombara de sua fronte. Assim, a esmeralda ressalta a simbologia de ser essa pedra a representante do pensamento que ilumina ao mesmo tempo em que está impregnado dos mistérios e dos sentidos.
Ela também é a pedra do Papa na religião cristã, assim como, anteriormente, representava a religião do paganismo como símbolo de primavera, vida manifestada e evolução de pujança verde da força natural. Onde expressava a periódica renovação da natureza e das forças ctônicas da terra, daí também ser referida como originária do inferno, embora hoje seja uma das representações do poder papal.
Esse fato, a princípio tão incongruente, se explica devido ao sincretismo que se fez entre as religiões. Esse mesmo sincretismo explica também que ora se diz que Curupira é um deus e ora se diz que Curupira é um demônio. Pois, no paganismo o demônio era um ente chamado de deus por possuir poder semelhante a um deus. Já na religião cristã, ocorreu uma separação entre bem e mau, dessa dicotomia, o demônio passou a representar a carne, os sentidos, o feminino e, portanto, o pecado.
Sendo os dentes de Curupira verdes feito esmeraldas, temos aí uma clara simbologia de que esse ente das matas é um demônio ou um deus de grande poder sobre a própria vida. Em Curupira ocorre a assimilação e a defesa do conhecimento racional e dos sentidos quanto ao conjunto da natureza. Curupira é o nosso deus ecológico de evidente influência pagã.
O fantástico Curupira possui cabelos vermelhos. O desencadear da vida parte do sangue, do útero, das paixões, ou simplesmente, do vermelho e desabrocha no verde.
O vermelho é considerado como símbolo fundamental do princípio de vida. É a cor da força, do poder e do brilho do fogo e do sangue.
Já a simbologia dos cabelos significa como que a síntese da personalidade de um indivíduo, daí o costume de se guardar mechas de cabelos para resguardar a pessoa de um mau destino. Os cabelos também representam a força e a virilidade como se vê no mito de Sansão.
O fato de Curupira ter os cabelos vermelhos significa que ele concentra em si mesmo o poder e a virilidade das matas e dos animais selvagens, bem como sua força de vida e restauração.
Assim é que o nosso Curupira representa o conjunto de conhecimento, de adaptabilidade e do grande poder de regeneração e de criação da natureza.
Fonte consultada:
(1) – Texto extraído do livro Histórias e lendas do Brasil (adaptado do texto original de Gonçalves Ribeiro).Ilustrações de J. Lanzellotti - São Paulo – APEL Editora, sem data - SP.
Cascudo, Luis da Câmara – Lendas Brasileiras – Ilustrações de Poty – 2ª. Edição – Ediouro – RJ. – 2.000.
Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain – Dicionário de Símbolos – 2ª. Edição – José Olympio Editora – Rio de Janeiro – 1989.
Cunha, Antonio G. da – Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem Tupi – Prefácio-Estudo de Antonio Houaiss - 5ª. Edição -São Paulo – Companhia Melhoramentos – Brasília: Universidade de Brasília, 1999.