De acordo com minha profissão, analista junguiana, busco compreender aquilo que vejo e escuto em termos de um sentido psicológico. Foi com tal olhar que assisti à trilogia do Senhor dos Anéis, uma produção cinematográfica dos anos 2001, 2002 e 2003. Dirigida por Peter Jackson, baseada na obra de J.R.R. Tolkien e que também ouvi O Anel dos Nibelungos, um ciclo de quatro óperas épicas criadas por Richard Wagner. A primeira apresentação de todo o ciclo aconteceu em Bayreuth, 13 de agosto de 1876.
Vou considerar os anos da apresentação tanto de um quanto do outro porque foi nesses momentos que o "sonho" de um autor ou autores, passa a ser compreendido como sonho coletivo agora assistido por todos e, talvez, assimilado por toda uma civilização. O intervalo entre uma apresentação e outra é de 125 anos. Mais de um século depois e a nossa civilização continua a reproduzir a saga do anel. Em outras palavras, nossa civilização continua a subjugar o feminino, abandonar a criança e instalar seu regime autoritário com o único intuito de possuir poder. Ver nessa mesma coluna, o texto intitulado "Wotan – Corrupção e Poder" de 21.09.2008 relativo à obra de Wagner.
No texto aqui apresentado, não há possibilidade de trabalhar todos os detalhes que merecem ser mencionados sobre os diferentes personagens e imagens. No entanto, vou procurar fazer uma análise daquilo que considero os principais momentos buscando mostrar que a história possui um significado que pode auxiliar as pessoas na percepção das origens psicológicas e do caráter destruidor das instituições e do regime autoritário.
A receptividade ao mito e de sua linguagem metafórica e simbólica, revela o discernimento da verdade de acordo com o princípio de realidade em oposição às palavras manipuladas de nossos políticos e às notícias também manipuladas com suas fotos e textos oportunistas. O mito, sem nenhum sensacionalismo, nos diz a verdade como os sonhos também o fazem.
No conto apresentado por Richard Wagner, o Anel do Poder é forjado pelo anão Alberich a partir do ouro roubado do fundo do rio Reno quando as donzelas do Reno, que o guardavam, se distraíram. Diversas personagens míticas lutam pela posse do objeto, incluindo Wotan, o chefe dos deuses. Os acontecimentos são bastante influenciados pelos planos dele, que leva gerações para superar as próprias limitações.
Em Tolkien, o Anel do Poder também é encontrado no fundo do rio, mas pelo homem pescador que depois perde sua figura humana devido ao seu fascínio, tornando-se Golum, o Sméagol. Uma criatura dividida entre o bem e o mal, representando a dicotomia ainda existente na psique humana. Inclusive fazendo a referência de que dicotomia entre bem e mal, feio e bonito, etc., faz parte de uma psique primária e sub-humana, além do óbvio significado de a ganancia pelo poder leva à doença psíquica e social.
O fato de o anel ser encontrado no fundo do rio representa que o desejo de poder está inconsciente. Sendo, então, ainda muito indiferenciado e carregado por outras questões psíquicas também inconscientes que impedem de que o desejo de poder seja simplesmente o desejo de poder fazer coisas e não o desejo de poder sobre os outros e as situações.
Diferentemente de Wagner, cujo anel do poder foi forjado por um anão, em Tolkien o anel do poder foi forjado pelo mago Sauron. Ele o fez secretamente, no fogo da Montanha da Perdição no ano 1600, Segunda Era, colocando dentro dele uma parcela de seu poder. Seu propósito era dominar todos os reinos e posteriormente foi resgatado pelo homem pescador que sucumbiu ao seu fascínio.
Segundo Chevalier e Gheerbrant no livro Dicionário de Símbolos, o anão personifica as manifestações incontroladas do inconsciente. Conteúdos psíquicos que não se desenvolveram para a consciência, que moram embaixo da terra, nas entranhas do inconsciente bruto, se expressando pela malícia e jocosidade, uma lógica dotada de toda a força do instinto e da intuição. Essa interpretação não visa pessoas, ela só se aplica ao símbolo e a sua forma abstrata.
Enquanto que o mago "é o criador de um mundo ilusório por seus gestos e por suas palavras" representa um ser produzido por dois princípios contrários de dominação, o mal e o bem, mas não mais de maneira rudimentar como no anão e sim como representante do instinto espiritual e ascensional. Gandalf e Sarumam formam um par clássico, onde um representa o mal e o outro o bem, sendo um a sombra do outro.
A contradição apresentada por ambos determina que, psicologicamente e coletivamente, ainda não está solucionada a questão do mal e do aspecto escuro de Deus, problemática cada vez mais enfocada em nossos tempos.
Em suma, os anões representam os instintos sensoriais do corpo. Da celebração e aceitação do corpo ou da matéria e, de modo contrário, o mago representa os instintos que fazem fugir do corpo, instintos espirituais e sua negação da matéria ou do corpo.
O mago, levado pela ganância e poder desmedido, forja o Anel do Poder porque o instinto espiritual também deseja para si o poder de comando e ser o senhor de todos os demais instintos, ele realmente acredita ser o mais importante e sabedor.
De modo que até aqui, vemos que o homo sapiens-sapiens permanece ora nos instintos sensoriais que o podem levar a comportamentos animalescos ou se perde nos instintos ascensionais e espirituais.
Sauron se transforma em um grande olho terrível e flamejante, se posta sobre a mais alta torre e de lá assombra e controla a todos. Na torre ao lado encontra-se o mago Saruman, seu maior cúmplice e servo.
O olho de Sauron é uma alusão ao Olho de Xiva que é o olho do coração que significa que é o homem vendo Deus e Deus vendo o homem, símbolo do conhecimento divino cujo elemento é o fogo.
Sauron não possui forma humana, de modo que necessita de Saruman para fazer as negociações. Isso não lembra apenas a religião, como também as demais empresas: o dono do negócio jamais é visto, mas sua presença se faz marcar pelos espectros que perseguem aqueles que não concordam consigo e sempre possui presidentes e diretores para falar e apavorar em nome dele, afora "as secretárias de Deus" que estão sempre cobertas de razão.
Hoje as grandes corporações, principalmente as bancárias, são as que comandam o poder no mundo e, literalmente, os presidentes de alguns países são fantoches dessas corporações. Coisas de Sauron, Saruman e de seu exército de espectros.
Aragorn, um dos homens dos reinos, fala sobre os espectros: "Eles já foram homens. Grandes reis dos Homens. Então Sauron, o Enganador, lhes deu nove anéis do poder. Cegos pela sua ganância que os levou, sem dúvida. Um por um eles caíram na escuridão. Eles são agora os Nazgûl. Espectros do Anel, nem vivos e nem mortos".
Os Nazgûl da Língua Negra de Mordor significa: Nazg "anel", e Gûl, "Espírito", "Espectro". Foram, nas obras de fantasia criadas por J.R.R. Tolkien, os nove "Cavaleiros Negros", uma vez homens, mas corrompidos por Sauron com os nove anéis do poder. Transformaram-se em servos completamente fiéis do Senhor da Escuridão por toda a Segunda e Terceira Era, dependentes do Um Anel para continuarem a existir.
No entanto, existe resistência contra seu comando. O mago Gandalf, não foi corrompido pelo poder. Assim, nasce a Sociedade do Anel que defende a destruição total do Anel do Poder. Significando a derrocada de um sistema mundial que escraviza em nome do poder de poucos. Não esqueçamos de que o Anel do poder de hoje chama-se "dinheiro".
Nove pessoas participam da Comitiva do Anel que são os Nove Andantes, para contrapor o número dos Espectros do Anel, já que esses também eram nove. Os nove membros da comitiva são o mago Gandalf, O Cinzento (que passará a ser O Branco); o andarilho Aragorn, Passolargo, filho de Arathorn e verdadeiro herdeiro de Gondor; o anão Gimli, filho de Glóin; o elfo Legolas, Folha Verde; o guerreiro Boromir, da Casa do Gondor; e os hobbits: Frodo Baggins, o portador do Anel, Samwise Gamgee, Meriadoc Brandybuck e Peregrin Took.
Aragorn foi criado junto aos elfos, de modo que modificou sua primeira natureza de homo sapiens-sapiens, consequentemente não se rende ao poder do anel. Boromir é fraco ao poder do anel e na saga, morre já no primeiro filme. O anão Glóin e o elfo Legolas formam uma dupla bastante forte e sustenta a luta pela destruição do anel juntamente com Aragorn e os hobbits.
No Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, os elfos são considerados divindades do elemento ar de origem nórdica e que encantam pela sua beleza e leveza. Procuram a companhia humana, mas trazem-lhes a morte, pois através de seu contato o homem tende a transformar sua natureza primária e rude em uma natureza consciente da sombra e da sua vida imbricada a todos os animais da terra, o que produz leveza e sabedoria que se distancia mais e mais da ganância de poder.
Os elfos representam forças ctonianas e noturnas, levando o homo sapiens-sapiens a tornar-se ciente de sua inserção em um mundo repleto de vidas e consciências. Por serem eles aéreos, significa que essa sedução a uma nova natureza, chega através da imaginação, dos sonhos, das fantasias, delírios que dentro de um processo consciente leva, sobretudo aos pensamentos claros e definidos pela sensibilidade e razão.
E os hobbits? Quem seriam essas criaturas em termos de significado simbólico traduzidos como elementos de nossa própria psique?
Sabemos que para acontecer a destruição do anel ou a destruição do monetarismo de acordo com os dias atuais, teremos de confiar essa missão ao nosso querido aspecto hobbit, o único capaz de ultrapassar a sedução do poder e destruí-lo em suas origens, bem onde foi forjado, como o dito popular "cortar o mal pela raíz".
Samwise e Frodo formam um par de heróis que podemos comparar com Persefal e Galahad, no mito da busca pelo Graal. Psicológicamente, eles se complementam e Frodo não conseguiria dar cabo de sua missão se não fosse por Samwise.
Os hobbits vivem uma vida alegre, simplória, de vínculos afetivos consumados um com os outros. Não estão em busca de poder, mas sim da vida bucólica e pacata de sua aldeia, é o que lhes satisfaz e é para lá que almejam voltar depois dessa aventura.
Frodo e Sam representam um herói mais próximo à psique humana que é capaz de duvidar de si mesmo e que sozinho e inseguro percorre seu caminho sem seguir ingenuamente os ideais coletivos. Antes de demonstrarem uma altivez agressiva, eles demonstram seus medos e corajosamente se empenham em cumprir com a missão para o bem da coletividade e não apenas de si mesmo.
Seguem seu próprio caminho e investem em suas aspirações, em seus sentimentos amorosos, em sua intuição e na amizade franca e honesta. Viver esses valores tão distantes da "esperteza" e sem levar em conta os status de poder, para muitos, parece ser uma atitude de gente boba e uma grande tolice. Mesmo assim, ambos prosseguem seguindo sua intuição e calor afetivo nesse caminho que poucos conseguem trilhar e finalmente alcançam o sucesso sem se preocupar com as tendências do mercado, mas tão somente com aquilo que realmente importa. Fazer e sentir-se parte da terra, dos animais e do planeta com a consciência de não destruir pela ganância e nem pelo poder.
Outros muitos dirão que isso é uma utopia. Precisamos dessa utopia para alcançar e fortificar o Sam e o Frodo que existe em nós antes de consumir toda a energia desse planeta.
Vivemos uma sociedade autoritária onde as mulheres ainda são subjugadas, onde os homens são valorados apenas pelo dinheiro que possui e onde as crianças estão abandonadas.
Onde estarão os hobbits? Somente eles poderão destruir o anel do poder e destituir o monetarismo e todas as suas malignas consequências de nossa sociedade.
Quando um conteúdo aparece num sonho ou numa obra artística significa que ele existe na psique, de modo que o nosso "desejo hobbit" já existe no imaginário coletivo e, com certeza, muitas pessoas já o estão desenvolvendo e, quiçá, colocando-o na prática diária.