ontem, quando me acordaram com a triste notícia da morte de ernst ingmar bergman, foi como um pesadelo: "estamos órfãos. nosso gênio nos deixou. a vida vale menos". esta frase, enviada pela mariana, uma amiga que está em barcelona, me deixou sem reação. pensando um pouco mais sobre a morte de bergman, percebi que com sua partida, o cinema perdia uma das raras possibilidades que ainda havia de ser reinventado. a cada novo filme de bergman, tínhamos acesso a uma espécie de profecia, um mapa (já amassado sim, com diversas rasuras), mas pelo qual se ainda podia identificar os caminhos mal traçados que o cinema ainda irá percorrer.
é estranha a morte de alguém tão próximo e com a qual você nunca trocou uma palavra. pois o contato, em um caso como esse, não era apenas com o bergman de 2007, ou os mais recentes (como nos filmes "saraband" e "o mundo de luz e sombras"). havia um diálogo permanente com o bergman dos anos 50, 60, 70. aquele mesmo homem que concebeu "persona" em uma cama de hospital, que imaginou o começo deste filme por meio de um poema de imagens e sons. o mesmo homem que enfrentava seus demônios mais íntimos em "a hora do lobo". o mesmo homem que em "cenas de um casamento" retirou qualquer possibilidade de aspiração romântica para uma relação a dois.
eram vários bergmans. e podíamos acessá-lo à vontade: ele nunca responderia. lembro-me de um grande cineasta como lars von trier contando que escreveu a bergman e nunca obteve resposta. típico de bergman. lembro-me de uma sessão em são paulo, na mostra internacional do cakoff, na qual foi projetado um filme de três horas com entrevistas densas com o diretor sueco. a realizadora estava lá e disse àquela pequena platéia que bergman sabia daquela sessão e que havia enviado um abraço aos amigos brasileiros, pois foi em são paulo, em 1954, que ele obteve o seu primeiro prêmio internacional.
lembro um artigo de paulo francis, no qual ele comentava com toda a sua articulação impecável filmes como "vergonha", "a paixão de ana", "a hora do lobo". lembro que francis defendia a tese de que se há profundidade no cinema, ela só poderia existir graças a um só homem: ingmar bergman.
lembro a emoção do dia em que pude assistir a "o sétimo selo" no cinesesc, em são paulo. era uma tarde de chuva. o cinema estava como de hábito: quase vazio. eu tinha 18 anos, e só tinha visto "fanny & alexander". na época, estava no apartamento de uma namorada mais velha, que gentilmente recusou o convite ao cinema. foi bom, pois bergman só deve ser visto sozinho: mais do que em qualquer outra ocasião, você deve assistir a um filme de bergman tão só como jamais esteve. só assim o diálogo com o filme vai crescendo de forma suave, sutil, até que surge a constatação terrível: sim, bergman, você tem razão: somos todos amargos e desprezíveis.
na época das filmagens do "satori", eu estava terminando de ler "imagens", a segunda autobiografia que bergman lançou. um pouco antes, havia devorado "o cinema segundo bergman", livro que sempre quis ter, e que o amigo paulo briguet gentilmente me emprestou.
no domingo à noite, estávamos celebrando o início da construção do cenário do próximo filme ("booker pittman"), mas alguns estavam preocupados. em meio à conversa, já em um bar, eu disse: "calma, calma, os deuses do cinema estão do nosso lado. eles irão nos ajudar". o diretor de arte do filme, josé nietzsche, completou: "sim, sim, kubrick, bergman, tarkovsky". eu disse: "ei, ei, o bergman não morreu. o bergman está vivo. os deuses do cinema são apenas os mortos".
eu não sei se begrman estava vivo ainda naquele momento, em seu retiro, nas ilhas faro, paisagem que deveria ser eternizada como palco para os sonhos do maior gênio que o cinema conheceu.
eu amo bergman, assim como amo kubrick, tarkovsky, fellini e welles. para mim, são os cinco gênios absolutos do cinema. se kubrick é a técnica; tarkovsky, a poesia; fellini, a magia; e welles, o estilo; pode-se dizer que bergman é a abordagem. não há nenhuma outra abordagem tão visceral e autêntica em toda a história do cinema – nenhum testemunho de vida, nenhum legado tão grandioso que por anos e anos será excessivamente estudado e analisado.
este senhor ingmar bergman, que começou logo criança quando ambicionou a "lanterna mágica" que seu irmão mais velho havia ganhado, este distante amigo (quase um "nosso homem na suécia"), simplesmente lançou o cinema para uma esfera que esta arte jamais havia alcançado: a possibilidade de se tornar tão viva, tão real, que a frase da doce mariana, ao longo dos anos, será cada vez mais verdadeira: "a vida vale menos".