Grande parte das operações da PF (Polícia Federal) que investigaram as suspeitas de irregularidades no uso de recursos transferidos pela União para combater a pandemia teve como alvos gestores de municípios, integrantes de secretarias de saúde e empresas contratadas pelas administrações, mas algumas também envolveram governadores.
É o caso da operação que levou ao afastamento de Wilson Witzel (PSC-RJ), além do pedido da PF ao STJ para indiciar Helder Barbalho (MDB-PA).
Ambos criticavam a condução do combate à pandemia pelo governo federal e negam as suspeitas de irregularidades que pesam contra eles.
O governador Wilson Lima (PSC-AM) também foi alvo de operação e, na véspera da instalação da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid-19, denunciado pelo Ministério Público Federal. Ele nega irregularidades.
As transferências federais a estados e municípios foram feitas por meio de medidas como a lei complementar 173, de 2020, que destinou auxílio da União de R$ 60 bilhões.
Desses, R$ 10 bilhões eram destinados exclusivamente às áreas da saúde e assistência social. O restante servia para mitigar os efeitos financeiros causados pela pandemia.
Houve outras transferências, como uma recomposição de valores destinados aos fundos de participação dos estados e municípios, além de recursos do Ministério da Saúde.
Ao mesmo tempo, no início da pandemia foi reconhecida emergência de saúde pública, o que facilitou, até o fim de 2020, o acesso a compras relativas à crise sanitária.
"Vários estados e municípios, também com o argumento da urgência no enfretamento da Covid-19, emitiram decretos estaduais que, na mesma toada da lei federal, afastaram a necessidade do processo de licitação para compras dirigidas à pandemia", disse o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) em requerimento que pediu a investigação e serviu de base para a instalação da CPI.
"Em face dos bilhões repassados pelo Executivo federal, além de verbas oriundas das próprias fontes municipais e estaduais e diante das brechas escancaradas por uma legislação criada sob regime de urgência, faltou transparência e sobrou desonestidade nos contratos firmados entre gestores públicos desonestos e a iniciativa privada."
A facilidade em compras com o dinheiro do governo federal ligou alerta dos órgãos de investigação. A PF calcula que a primeira ação envolvendo a pandemia foi a Operação Alquimia, investigação pontual em Aroeiras (PB), cidade de 19 mil habitantes.
Foram investigados contratos para compras de cartilhas sobre a pandemia –sendo que os materiais já estavam disponíveis gratuitamente no site do Ministério da Saúde.
Até segunda (26), houve operações relacionadas a compras em ao menos 23 estados, na maioria dos casos ligadas a verbas dos municípios, para apurar desvios, contratos irregulares, fraudes em licitações e superfaturamentos.
Como foi definida a ajuda federal a estados e municípios por causa da pandemia?
O principal auxílio foi previsto na lei complementar 173, de maio de 2020. Ela destinou a estados, DF e municípios R$ 60 bilhões para aplicação em "ações de enfrentamento à Covid-19 e para mitigação de seus efeitos financeiros".
Foram R$ 37 bilhões com destinação prevista a estados e ao Distrito Federal e outros R$ 23 bilhões aos municípios.
Além disso, em abril do ano passado medida provisória previu repasse de R$ 16 bilhões para "compensação da variação nominal negativa dos recursos repassados pelo fundo de participação". Há ainda recursos do Ministério da Saúde e de outras pastas.
Esse recurso é exclusivo para a área da saúde?
Não. Do repasse de R$ 60 bilhões, por exemplo, R$ 10 bilhões são direcionados exclusivamente à saúde e assistência social; R$ 7 bilhões foram aos estados e ao DF e R$ 3 bilhões aos municípios.
Que medidas facilitaram o uso de recursos por gestores?
No caso do governo federal, a lei que dispõe sobre medidas para enfrentamento de saúde pública devido ao coronavírus autorizou a compra com dispensa de licitação para artigos ligados à Covid-19.
"Praticamente todos [os gestores] fizeram leis ou decretos permitindo e flexibilizando esse tipo de contratação", afirma Raphael Sodré Cittadino, presidente do Ielp (Instituto de Estudos Legislativos e Políticas Públicas).
"A qualquer momento, pela lei de licitações, o gestor pode fazer contratação direta em situação emergencial ou crítica, não necessariamente declarada ou decretada. Mas esse arcabouço jurídico criado com a pandemia induziu também um processo de contratações diretas no Brasil. O gestor ficou mais confortável com esse tipo de contratação."
Para Cittadino, não é possível dizer que essa flexibilização aumentou a frequência de práticas de corrupção. A onda de operações pode ser, também, porque houve uma maior atenção de órgãos de controle e fiscalização sobre as verbas destinadas a essas finalidades.
Qual o objetivo da CPI da Covid?
Além de investigar as ações e omissões do governo Jair Bolsonaro na pandemia, a CPI ficou com a finalidade de apurar "as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos" com recursos originários da União por administradores públicos federais, estaduais e municipais.
O que vinha dizendo o presidente Jair Bolsonaro?
Ele cobrava que os repasses a estados e municípios também fossem apurados, defendendo a ampliação da comiss'ao. "A CPI [é] para apurar omissões de Jair Bolsonaro, isso que está na ementa. Toda CPI tem de ter um objeto definido. Não pode, por exemplo, por essa CPI que está lá, você investigar prefeitos e governadores, onde alguns desviaram recursos. Eu mandei recursos para lá, e eu sou responsável?", disse ele, no último dia 10.
Quais os principais casos de operações da PF por suspeita de irregularidades em uso de recursos da pandemia?
Algumas das operações de maior repercussão envolveram governadores. Em maio de 2020, a PF foi autorizada a fazer busca e apreensão no Palácio das Laranjeiras, residência oficial do governador do RJ, Wilson Witzel (PSC), hoje afastado. A polícia mirava um suposto esquema de desvio de recursos destinados ao combate à Covid no estado.
Witzel se tornou réu sob acusação de corrupção e lavagem de dinheiro, após o STJ receber a primeira de três denúncias da PGR. Ele é acusado de ter chefiado um esquema de desvio de recursos envolvendo contratos da Secretaria de Saúde estadual.
Segundo a acusação, ele lavou o dinheiro ilícito por meio de contratos fictícios com o escritório de sua mulher, Helena. A partir das denúncias, Witzel passou a responder a processo de impeachment.
O ex-juiz negou ao tribunal que julga seu impeachment que tenha cometido qualquer ato ilícito e argumentou que não poderia acompanhar de perto todos os contratos firmados pela administração estadual. "Não deixei a magistratura para ser ladrão", disse.
Também houve três apurações que investigaram suspeitas de desvios no Governo do Pará e tiveram, entre os investigados, o governador Helder Barbalho (MDB).
Em junho, a Para Bellum investigou suspeitas de fraudes na compras de respiradores pulmonares no estado. Essa operação teve duas fases.
Meses depois, em setembro, a operação S.O.S. investigou supostas irregularidades na contratação de organizações sociais para a gestão de hospitais de campanha em municípios paraenses. Os contratos foram firmados sob dispensa de licitação.
No pedido feito ao STJ, o Ministério Público Federal disse que Helder "tratava previamente com empresários e com o então chefe da Casa Civil sobre assuntos relacionados aos procedimentos licitatórios que, supostamente, seriam loteados, direcionados, fraudados, superfaturados, praticando prévio ajuste de condutas com integrantes do esquema criminoso e, possivelmente, exercendo função de liderança na organização".
Os secretários dos Transportes e da Casa Civil foram presos na operação.
Em fevereiro, a PF pediu ao STJ para indiciar Helder, referente à primeira apuração. O governo paraense disse em à época que "demonstra, sim, uma atuação proativa de quem teve e tem como prioridade a proteção da saúde dos paraenses".
Em nota, o Governo do Pará afirma que "como é de conhecimento público, foi o próprio governo do estado quem descobriu e denunciou o mau funcionamento dos aparelhos. Depois obrigou a empresa a devolver os recursos adiantados na compra dos respiradores. Não houve dano ao erário. O governo ainda processa a empresa por danos morais coletivos".
Já o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), foi alvo de duas fases da Operação Sangria no ano passado, que investigaram suspeita de desvio de recursos destinados ao combate à Covid-19. Segundo a investigação, houve compra de 28 respiradores, com sobrepreço, de uma empresa importadora de vinho.
Na segunda (26), na véspera da CPI, ele foi denunciado pelo MPF sob acusação de liderar uma organização que praticava peculato e dispensa indevida de licitação.
Em nota, Lima disse que "a denúncia oferecida pela PGR não apresenta provas do envolvimento dele em supostos crimes". "Mantenho total confiança na Justiça, que haverá de, oportunamente, reconhecer que as acusações são totalmente infundadas", disse o governador.
Governantes têm reagido às medidas de apuração?
Como mostrou o jornal Folha de S.Paulo, um grupo de governadores quer pedir ao Conselho Nacional do Ministério Público o afastamento da subprocuradora Lindôra Araújo do Giac (Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia de Covid-19) e da investigação sobre possíveis desvios de verbas federais destinadas aos estados para combater a pandemia.
A subprocuradora encaminhou ofício com perguntas sobre gastos com a pandemia em que acusa os governadores de mau uso do dinheiro público. No documento, ela aborda suspeitas de desvios levantadas pelo presidente Jair Bolsonaro. Os questionamentos foram encaminhados após a criação da CPI da Covid.