Falando de Literatura

OS TEMPOS MUDARAM. NÃO TANTO!(Crônica de Silvia Araújo)

25 fev 2012 às 17:46

Passei alguns carnavais no Rio de Janeiro e em Florianópolis, onde o convívio alegre com os primos tornou inesquecíveis os dias de nossa mocidade. Afinal, férias e carnaval andam juntos.

Aproveitávamos o sol e o mar da então bucólica e segura ilha de Paquetá banhada pelas águas azuis da Guanabara. Sim, acreditem, não é romantismo sem poluição, realmente eram azuis as águas daquela baía. A travessia de barca desde a Praça XV por si só era "o" passeio.


Já, na ilha de Floripa, outro braço da família curtia demais a festa de carnaval, ao ponto de acompanhar a batucada dos clubes pelas ruas. As bandas do "Doze de Agosto" e do "Lira" se encontravam amanhecidas de folia no centro da cidade na quarta-feira de cinzas. Era Momo quem obedecia à tradição do povo seguindo os blocos. Concursos de fantasias e bailes de salão contagiavam de uma alegria sem idade a ousadia de pisar as calçadas da fama de bons carnavais.


Todos aprendiam a cantar as marchinhas de carnaval, tocadas nas rádios com antecedência de semanas. Entre os preparativos da festa, os ensaios das escolas de samba cariocas eram disputadíssimos, regados de cerveja bem gelada (e muitas!), sem esfriar a empolgação. Nada a perder, lá estava a nossa família nas mesas de pista da quadra da Mangueira, no miolo da Zona Norte.
Nem precisava subir o morro, porque o samba descia. Baixava o espírito do carnaval da terra nos decibéis elevados comprovando que uma vez campeã, outros desfiles só confirmariam a posição da escola.


O batuque fervia o sangue e vibrava a alma. Parado ninguém ficava, tampouco indiferente à euforia. Deixávamo-nos levar pelo ritmo evolutivo da comissão de frente. O rodopiar das baianas, as reviravoltas da porta estandarte, o rebolado das mulatas tinham o requebrado dos iniciados na música maior do Brasil. Claro que caíamos na dança concentrados em não errar o passo, embora nos faltasse o essencial: o molejo, a malícia, a maestria de quem tinha "samba no pé" naturalmente.


Tudo era novidade para alguém que vinha de um clima frio, onde de carnaval se via um arremedo. Meus primos se desvelavam para mostrar à visitante do sul o típico da "cidade maravilhosa" à espera da permissiva festa. Naquela noite, a quadra transbordou de gente, surpreendida por uma trovoada, dessas que saem do nada. Muita água despencou para acalmar os ânimos. Acalmar, eu falei? Perdão, um lapso da fala apressada. Os tamborins bateram mais eletrizantes, cadenciados pelo som da cuíca e o ritmado molho dos pandeiros. Nada sustava os passistas. O clima esquentou. A confusão foi total – samba, chuva e carnaval.


No corre-corre do público molhado, cada um se abrigava como podia. Empolgados, assistíamos ao caos. Equilibrando-se no andar, aos tropeços, passa por nós um garçom. Mais parecia ter "tomado umas e outras". Com um misto de orgulho e indiferença, o seu olhar nada via, focava o vazio de quem nem se importava. Erguida em uma só mão, qual taça de grande conquista, sua bandeja suportava precioso conteúdo: um sutiã.



De carnavalescos conhecemos muitas histórias, mas essa de "Floripa" aconteceu na família, bem diante dos nossos olhos mal dormidos, numa terça de carnaval. Ao levantar a cabeça, sempre tão compenetrada e gentil, a tia nem sorveu o gole de café com o grito:


– Roubaram! Roubaram!


Nosso silêncio cansado foi quebrado com violência, obrigado a acordar.
– O quê?
– Roubaram! Roubaram!
– Roubaram o quê?


Abobalhada, ela só repetia a frase: – Roubaram! Roubaram! Em câmera lenta pra compreender qualquer coisa após uma noitada de samba, também repetíamos a contrapergunta: – O quê? O quê?


Ainda com a xícara à altura da boca, em estado de choque, a tia apenas balbuciava as palavras:
– A cortina, gente! A minha cortina sumiu!


Entreolhamo-nos com aquela cara de "ninguém sabe, ninguém viu", sem resposta pra surpresa da dona da casa. Tão à nossa frente e não tínhamos visto a janela desnuda! Sem comentários, indagações, nem suposições a Sherlock Holmes. Não houve tempo. O espetáculo foi imediato e, como um passe de mágica, a cortina apareceu. Difícil os olhos acreditarem na cena que se descortinou. Esfuziante do alto de um salto, plataforma dourada, desfilando ao som do samba que só morava em nossos ouvidos, entrou na copa o empregado da casa. Falei empregado? Sim, dessa vez não é lapso. E com aquela simpatia usual de quem curtia carnaval, ele simplesmente comunicou à plateia estupefata:


– Vejam que bela fantasia a cortina rendeu!


SILVIA MARIA DE ARAÚJO é socióloga, doutora pela USP, professora aposentada da UFPR e membro da Academia Feminina de Letras do Paraná.


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