Falando de Literatura

O Terminal Guadalupe e as sombras (conto de Isabel Furini)

29 nov 2014 às 19:50

O TERMINAL GUADALUPE E AS SOMBRAS (Conto)

18 horas - Cai o sol de inverno, pálido, sem forças.
19 horas – Escurece mesmo.

Os operários da construção civil, trabalhadores domésticos, pessoal da limpeza, vendedores alguns camelôs, professores, poetas e sonhadores, saem de seus trabalhos e correm até o terminal.


Mariazinha, está na fila do Vila Zumbi quando escuta seu nome: "Mariazinha" – alguém acena para ela. Que bom! – murmura a Mariazinha – O gerente vai me dar carona de novo.
– Não faça isso senhora, é pecado. – diz uma mulher com saia e cabelos longos (muito longa a saia, muito longo o cabelo).


Uma mulher de olhos azuis observa de cima para baixo a mulher de saia comprida e solta uma gargalhada. – Cale a boca sua vadia e cuide de sua vida! – fala com autoridade.


Minutos depois chega Aparecida, Cida para os amigos. Estou pensando em fotografar esses dois e ganhar uma grana extra.
Boa ideia, fala a mulher dos olhos azuis.


Um casal de idosos olha para elas e comenta algo sobre falta de ética. – O mundo mudou, meu velho – fala a idosa.


Duas mulheres olham para a igreja do Guadalupe e fazem o sinal da cruz. Um pai fala para seus filhos "é o triunfo do mal, um sinal do fim do mundo". Idiotas pensa uma professora, tira um livro da bolsa e começa a ler. Várias pessoas da fila comentam o fato de o ônibus estar demorando mais que outros dias.


O Apolinário olha as pessoas apinhadas e fala:


Foi tão difícil a estrada!
meus pés estão cansados,
minhas mãos, calejadas,
minha boca muda e sem vida
minha vida sem esperanças.


Ninguém olha para ele. Que indiferença. Ninguém vai dizer nada? Gente. Eu declamei um poema.


Chega o ônibus – Por fim! – exclamo um idoso. As pessoas começam a subir e ocupar os assentos. Alguns viajam de pé, outros preferem esperar o próximo. A fila parece uma cobra gigantesca. Cresce rapidamente.


Apolinário repete:


Foi tão difícil a estrada!
meus pés estão cansados,
minhas mãos, calejadas,
minha boca muda e sem vida
minha vida sem esperanças.


– Parece que ninguém gostou do poema. Fala o Apolinário.
– Não adianta – comenta Tiago, um amigo dele. Eles não conseguem te enxergar.
– Um momento. Veja essa criança, ele escutou. Sim, ele escutou e está olhando para os lados.


– Olhe, mamãe. Esse cara engraçado, lá no teto.
– Querido, esse é seu amiguinho invisível? – Pergunta a mãe sorridente, encurvando-se sobre a criança e dando-lhe um beijo na bochecha.
– Ele não é meu amigo – fala a criança.


De repente uma forte luz ilumina o lado direito do terminal, mas ninguém repara.


Do lado esquerdo, as sombras crescem.


Do lado direito um homem com roupas brancas tem um sorriso iluminado.


Do lado esquerdo, um homem com roupas cinzas tem um olhar terrível.


Do lado direito, para um ônibus, as pessoas começam a subir. O Zecão abre a carteira. O homem do sorriso iluminado grita:


– Não faça isso Zecão, falei tantas vezes para não fazer isso, meu amigo.


Do lado esquerdo três homens correm. O rapaz de óculos empurra o Zecão, outro tenta pegar a carteira. O Zecão, aperta a carteira. Um dá um soco no nariz dele. Mas o Zecão não solta. O terceiro, passa a navalha pela garganta do Zecão.


O Zecão não solta a carteira. As pessoas gritam. O sangue encharca o terminal. As pessoas pegam os celulares e tiram fotografias do Zecão morrendo. Ninguém chama uma ambulância. É mais importante registrar o momento. Não adianta, esse cara vai morrer mesmo, fala o rapaz de camiseta amarela. Vamos tentar vender essas fotos para algum jornal, murmura o amigo dele.


Uma moça solicita a uma mulher vestida com casaco preto, de olhos esbugalhados, para tirar uma foto dela ao lado do morto. A mulher está a ponto de chorar.

– Por favor, senhora, implora a moça. Uma coisa como esta é difícil de acontecer, fala enquanto penteia o cabelo. – Minhas amigas não vão acreditar. Preciso de uma foto.

A mulher, seca uma lágrima com o dorso da mão e pega a câmara fotográfica.
– Tem que apertar aqui – fala a moça mostrando um botão prateado na parte direita da câmara. A mulher, indecisa, demora um pouco, mas consegue tirar a foto. Na frente a moça, no chão o homem ensanguentado.
– Preciso de várias fotos, por favor, alguma delas vai ficar boa. Fala a moça muito empolgada como se o momento fosse de festa.

Perto dela um rapaz com seus fones de ouvido faz movimento de dança com a cabeça, mas o corpo permanece rígido no lugar.


O homem sorridente que faz parte do globo de luz da direita grita:
– Ei, Zecão. Venha para este lado, homem. Não vai para as sombras, não. Venha!


Os outros seres que estão a seu lado também gritam: – Venha, Zecão, venha.


– Zecão, você está em nossa lista! – grita o homem de olhar terrível que chefia as sombras.
– Está na lista! – grita o coro de sombras desafinado.


O Zecão está confuso. Lembra da esposa e dos filhos, ele quer voltar para casa. Sentar no sofá, assistir TV., comer o arroz com feijão.


O homem de olhar terrível do lado esquerdo mostra partes da vida do morto.
O homem sorridente do lado direito, também mostra partes da vida do morto.


O Zecão sente medo. Impulsivamente, corre para a luz.


O poeta vê a cena e declama um poema:
Essa luz que agora acende,
com milhares de lembranças,
é de um túnel que surpreende.
Quem caminha além do túnel
reencontrará a esperança.

O homem sorridente da bola de luz que está do lado direito grita:


– Poeta, você vai entrar na luz ou vai continuar declamando no terminal?


– Eu também morri neste terminal – fala o poeta. Mas foi de problema cardíaco, há 8 anos. Acho que vou ficar por aqui mesmo. Sempre encontro amigos.


– Sim, vamos ficar mais um pouco – disse o amigo de Apolinário. Os dois pulam sobre o teto de ônibus amarelo que está saindo do terminal e acenam repetidamente com a mão direita.


Texto escrito na oficina de Ricardo Corona, em 2014, sobre o tema "Terminal Guadalupe".
Isabel Furini é escritora e poeta.


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