Estou desenvolvendo uma obra de crítica literária e gostaria de dar aos meus caros leitores o gostinho de um dos capítulos. É apenas um "petit four" para meditarmos no feriado da Independência, sem nos esquecermos de que ser independente é ser um solitário.
É muito comum vermos pessoas lendo livros e mais livros de autoajuda no intuito e se "encontrarem". Pois bem, se a literatura de autoajuda promove o encontro, a literatura obra de arte promove a perdição.
Quando lemos um livro de boa literatura, retiramos os nossos olhos das imagens e nos perdemos em letras, palavras, frases, fases e começamos a imaginar. Olha que interessante: o livro nos afasta das imagens para que nos percamos a imaginar.
A cada folhar de página nos perdemos no tênue vento provocado pela folha, como se a cada folhar houvesse um falhar. Claro. O fim de uma página sempre é um convite à aventura de uma nova página. É um navegar sem bússola: estamos perdidos à sorte do que nos conta o narrador ou os "eus-líricos". Cada nova página nos deixa oscilando à deriva do devir.
"A oscilação de Baudelaire, entre o gesto de recolher a aura do poeta e o de deixá-la jogada na sarjeta, entre postular a teoria da arte pela arte, propor a teoria das correspondências e lutar nas barricadas, era o indício claro de uma crise da arte que rebentava em seu tempo e da qual ele era a maior expressão". (KHOTHE, 1976, p. 70)
A crise provocada ao findar de cada capítulo aturde o leitor que se coloca em xeque ou choque diante da difícil decisão entre parar a leitura e marcar a página, para se encontrar e continuar a leitura em outro momento, ou se atirar totalmente perdido a mais um capítulo e "há" outros. Crise não me parece ser a essência da literatura de autoajuda, mas em relação à literatura obra de arte, a crise é o crime e o castigo.
Como a literatura, linguagem e instituição, é decomposta em imaginários, valores, vozes e sensibilidades pensantes, não há, nela, um compromisso tácito com o conforto do leitor, que mais é um "voyeur". Alguém que sonda além da sonda, ainda que solitário e perdido.
A cada novo livro lido o leitor vai se acostumando a estar só consigo mesmo e a não ter o controle sobre seus caminhos. Por isso, muito mais importante que escrever livros, muitas vezes pífios, é ler muitos livros de qualidade. Como nos diz Marisa Lajolo:
"É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. Por isso a literatura é importante no currículo escolar: o cidadão, para exercer, plenamente sua cidadania, precisa apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário competente, mesmo que nunca
vá escrever um livro: mas porque precisa ler muitos." (LAJOLO, 2008,p.106)
A solidão da leitura se assemelha à solidão da morte. É quando estamos a sós, frente a frente, com o destino. Nossa alma se perde em cada linha, desconhecendo rostos, nomes avulsos, casas sem cheiro, ambientes onde nunca estivemos e histórias que não são as nossas, mas que, se fossem, nada seriam.
O encontro com o "não-eu" das personagens nos leva a refletir, sem espelhos, sobre quem somos. É um caminho tortuoso o da leitura. E só quando nos reconhecemos perdidos buscamos novos caminhos, do contrário nossa vida se resume a uma marcha sem sentido ao encontro da morte. Por isso a necessidade de se formar leitores de literatura obra de arte. Nas palavras de Goulart:
"Podemos pensar sobre o letramento literário no sentido que a literatura nos letra e nos liberta, apresentando-nos diferentes modos de vida social, socializando-nos e politizando-nos de várias maneiras, porque nos textos literários pulsam forças que mostram a grandeza e a fragilidade do ser humano; a história e a singularidade, entre outros contrastes, indicando-nos que podemos ser diferentes, que nossos espaços e relações podem ser outros. O outro nos diz a respeito de nós mesmos – é na relação com o outro que temos oportunidade de saber de nós mesmos de uma forma diversa daquela que nos é apresentada apenas pelo viés do nosso olhar." (GOULART 2007 p.64-65)
Por fim, além de perdição, literatura é abandono. Isso mesmo: abandono. É quando abrimos mão de um "não-eu" ente em detrimento a um "não-eu" latente. Nós nos abandonamos nas mãos de um estranho narrador sem rosto que nos convida a segui-lo, sem pressa e nem promessa de paraíso. Assim, ao ler nos perdemos e nos abandonamos à sorte/morte de um enredo.
Deveríamos ter aprendido isso desde a infância, mas como não tivemos letramento literário... Tivemos apenas motivadores, aliás, como até hoje há em Curitiba. Pessoas bem intencionadas, mas muito mal preparadas para compreender este abandono de perdição.
Não se esqueçam, Joãozinhos e Mariazinhas, que papai e mamãe os abandonaram em um bosque e que vocês estão perdidos para sempre. Alguns chamam isso de nascimento...
Que deus nos livro!
Um abraço a todos os amantes de Literatura, os que estão perto e os que estão longe, em algum livro qualquer!
Professor Robson Lima: Robson Lima é curitibano, nascido no bairro da Água Verde. É professor de Língua Portuguesa, Literatura, Leitura de Múltiplas Linguagens e um estudioso da poesia paranaense. Autor de livros didáticos, também é Consultor Educacional e Assessor Pedagógico nas áreas de Linguagens e Comunicação, ministrando palestras em todo o território nacional. Poeta, músico, declamador, ator e transador de palavras, Robson Lima é um amante dos versos, artes e artemanhas. Autor dos livros Wintervalo (poesia) e Leitura em Movimento: da letra ao letramento (livro que versa a respeito do aprofundamento da leitura).
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