"No médico particular, tratei durante uns dez anos com um diagnóstico errado. Perdi o emprego em função da doença e precisei recorrer ao SUS [Sistema Único de Saúde]. Isso já tem 4 anos", conta a publicitária Alessandra Tonieti, 52 anos. Ela tem transtorno de bipolaridade, distúrbio que provoca quadros depressivos e de euforia.
Assim como a publicitária, muitos brasileiros também têm procurado a rede pública para tratar a saúde mental. Dados do Ministério da Saúde mostram que, nos últimos cinco anos, o atendimento ambulatorial para depressão e ansiedade está em uma crescente, sendo que, segundo especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo, a falta de profissionais especializados em identificar os transtornos ainda é um desafio significativo.
Apenas nos seis primeiros meses deste ano, o SUS registrou 335.025 consultas para esses dois diagnósticos, o que equivale a 73,6% de todos os atendimentos de 2022 (454.769 atendimentos) e 172,7% dos registros de 2018 (205.848).
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Tonietti vive na cidade de São Paulo e levou cerca de três meses para ser encaminhada para o tratamento público, o que considerou rápido e diz que chegar com diagnóstico ajudou.
A publicitária consulta mensalmente um psiquiatra do CAPs (Centro de Atenção Psicossocial), onde também faz terapia em grupo. A cada dois meses, encontra uma médica generalista de uma UBS (Unidade Básica de Saúde), na qual retira todos os medicamentos.
O médico Fernando Fernandes, psiquiatra do Programa de Transtornos do Humor do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP), destaca que a rede de distribuição de medicamentos, principalmente a de alto custo, costuma funcionar bem. "As medicações de um grande centro não são diferentes das que a gente tem em lugares mais afastados. No entanto, a disponibilidade de profissionais acaba sendo um gargalo muito maior", destaca
Coordenador do Programa de Tratamento em Depressão do IPq, Fernandes pontua que, às vezes, os pacientes que chegam com quadros mais complexos não são necessariamente os mais graves e que saber diferenciar é primordial. "Não depende apenas do diagnóstico. Há casos de esquizofrenia, por exemplo, que, quando bem tratados, permitem à pessoa ter uma vida muito próxima do normal. E há depressões crônicas graves, com risco de suicídio", afirma o médico do IPq.
Fernandes diz que diferentemente de um surto psicótico, de uma tentativa de suicídio ou uma crise de pânico confundida com infarto, que por natureza demandam um tratamento emergencial e chegam pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPA), os quadros de depressão e ansiedade, em geral, requerem um olhar mais atento.
Familiares e amigos devem ficar de olho a mudanças de comportamento e insistir para que a pessoa busque ajuda médica em uma UBS. Na sequência, os profissionais de saúde que recebem o paciente devem estar aptos a identificar a gravidade do quadro e encaminhar para os centros especializados.
O médico destaca que, de fato, durante a pandemia da Covid-19, houve um aumento de sintomas agudos depressivos e ansiosos, como insônia e abuso de substâncias, sobretudo o álcool, e que isso se refletiu na procura por assistência no SUS, mas não necessariamente em diagnósticos, cujas taxas têm voltado para as de pré-pandemia.
A estudante Anna Celli dos Santos Faria, 23, passou por três tentativas de suicídio antes de descobrir a bipolaridade. "Depois da terceira, veio uma internação psiquiátrica e as coisas foram acontecendo muito rápido. O neurologista indicou um psiquiatra e a gente começou o tratamento", conta
Levou outros sete anos de tratamento com médico particular antes de descobrir também ter transtorno de personalidade borderline, que a estudante trata atualmente pelo SUS.
A mãe dela, a autônoma Renata Cristina dos Santos, 52, diz que não havia histórico na família. "Foi tudo muito novo e assustador. Tanto que, na primeira vez que ela tentou suicídio e, após a alta clínica, me disseram que seria removida para avaliação psiquiatra, eu não autorizei. Levei para casa", diz Santos.
Quando houve reincidência, a mãe entendeu a complexidade. "Vi que precisávamos de ajuda especializada. Começamos com o convênio, depois fomos para rede particular, mas as finanças foram ficando apertadas e surgiu a oportunidade de tratar via SUS", lembra.
ENTENDA O PASSO A PASSO PARA FAZER NO TRATAMENTO NO SUS
Passo 1
Procure a UBS (Unidade Básica de Saúde) mais próxima de sua residência e marque uma consulta com clínico geral ou médico de família. Se estiver em uma crise de pânico (ansiedade com sintomas físicos marcantes), houver risco ou tentativa de suicídio ou qualquer situação que o paciente ou família julgue haver risco, o paciente precisa ir direto para um pronto-socorro ou UPA (Unidade de Pronto Atendimento), onde receberá um primeiro atendimento e poderá receber posterior encaminhamento, se necessário
Passo 2
Na consulta na UBS, o médico deve avaliar a gravidade do quadro e determinar se o tratamento segue pela UBS ou se deve ser encaminhado para um diagnóstico mais aprofundado com psiquiatra do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial)
Passo 3
Caso seja encaminhado ao CAPS, o paciente passa por consulta com psiquiatra que determina se o tratamento será medicamentoso, terapêutico ou misto e com quais especialistas é preciso fazer acompanhamento (nutricionista, psicólogo, entre outros). A partir disso, a pessoa pode ser direcionada para terapias individuais ou em grupo
Associação aponta dificuldades do tratamento
A Abrata (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos), entidade com 23 anos e 17 mil associados, atende cerca de 6.000 pessoas por ano em grupos de apoio online.
Neila Maria Melo Campos, presidente da Abrata, diz que os relatos recebidos vão desde a dificuldade para consultas mensais com psiquiatras no SUS e acesso ao pronto-socorro psiquiátrico até a ausência de uma política pública eficaz.
"Temos uma carência importante de profissionais que compreendam as características da doença mental e que demandam treinamento especializado. Além disso, não há estrutura hoje para oferecer continência e suporte às pessoas com transtorno mental ditos mais leves, como a depressão e a ansiedade, ou àquelas que estão sem manifestação de crises, mas dependem de medicação e tratamento terapêutico", diz Campos.
Para o médico psiquiatra Volnei Vinícius Ribeiro da Costa, presidente do Conselho Científico da Abrata, há dois pontos cruciais a serem resolvidos no Brasil: a falta de investimentos e a inexistência de um planejamento que não seja modificado com mudanças de governo.
No segundo tópico, o psiquiatra destaca a importância dos planos de carreira para fixar profissionais em regiões mais distantes do país. "A saúde mental requer o uso inteligente de estatísticas, que conseguem prever demanda; na diferenciação dos níveis de assistência de acordo com a complexidade dos casos; no atendimento precoce de casos iniciais, evitando que esses pacientes se tornem crônicos e necessitem do sistema de saúde pelo resto da vida; e na política maciça de prevenção de novos transtornos mentais", diz o médico.
As doenças psiquiátricas, afirma Costa, têm melhor evolução quando reconhecidas e tratadas o mais breve possível, assim como ocorre em outras doenças, como diabetes ou hipertensão arterial. "Quando a doença não recebe diagnóstico precoce, o tratamento pode se tornar mais complicado, com mais visitas aos profissionais de saúde e mais medicações."
Além disso, a falta de tratamento traz prejuízos nos estudos e no trabalho. "E há o risco de a pessoa passar a pensar no fim da vida como solução. Todos esses problemas são interrompidos quando ela é avaliada, corretamente tratada e educada sobre sua saúde", avalia o médico da Abrata.
Em nota à Folha de S.Paulo, o Ministério da Saúde informou que o SUS conta com uma rede de 2.857 CAPS e 870 Serviços Residenciais Terapêuticos, tendo recebido este ano uma ampliação de 27% no orçamento e 86 novos serviços habilitados, e que está prevista "a abertura de mais 200 novos CAPS."