Um terço dos bebês que morreram de Covid-19 no país não teve acesso à UTI ou à ventilação mecânica por falta de leitos.
Desde o início da pandemia, em março de 2020, até o último dia 11 de julho foram registrados 10.165 casos graves de Covid-19 em crianças até dois anos e 846 mortes. Os primeiros meses deste ano concentram 46,6% dos casos e 67,5% dos óbitos.
Dos bebês que morreram por Covid nessa faixa etária, 32,5% não foram para UTI e 38% não passaram por intubação,
recursos terapêuticos fundamentais para aumentar as chances de salvar vidas nessas situações. A região Norte concentra a pior taxa: 46,8% dos bebês que perderam a vida não passaram pela intubação.
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Os dados inéditos são do Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19, que monitora casos e mortes de gestantes e puérperas notificados no Sivep-Gripe e que tem agora uma plataforma para analisar os casos de Srag (Síndrome Respiratória Aguda Grave) nos 730 primeiros dias dos bebês.
Ainda que a proporção de mortes infantis por Covid-10 seja bem inferior à do público adulto em geral (representam 0,33% do total), o aumento do número absoluto de casos e óbitos tem chamado a atenção dos especialistas. Os dados também chocam porque estão muito acima dos índices observados em outros países.
Para Agatha Rodrigues, professora de estatística da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) e uma das coordenadoras do observatório, impressiona a alta concentração de mortes nos primeiros meses de vida do bebê: mais da metade delas está concentrada até no terceiro mês. Foram 446 óbitos nesse período.
Na opinião da pediatra Cândida Costa Martins, pesquisadora que participa da análise, é possível que a prematuridade esteja relacionada a muitas dessas mortes. "O sistema imunológico dessas crianças ainda está em formação, elas têm menos capacidade responsiva ao vírus."
Pesquisas apontam que a Covid-19 aumenta o risco de parto prematuro e morte neonatal. Em muitos casos, quando a gestante desenvolve um quadro muito grave da doença, os partos têm sido antecipados,
Segundo Rodrigues, os dados não permitem saber se essas crianças adquiriram o vírus no hospital. Dos casos em que há informação de onde ocorreu a infecção, 11% foram no hospital.
A falta ou má distribuição de leitos infantis pelo país é outro fator que agrava a situação. "A gente tem muita maternidade para receber crianças de termo [nascidas entre a 37ª e a 41ª semana de gestação], mas não prematuros ou uma criança que complica", diz a ginecologista e obstetra Rossana Pulcineli Francisco, professora da Faculdade de Medicina da USP e também coordenadora do observatório.
No estado de São Paulo, 20% dos bebês que morreram de Covid-19 não tiveram acesso à UTI. Em Minas Gerias, foram 38%. Em Santa Catarina, que viveu um colapso dos leitos de UTI, 46%. Já o Maranhão concentra um dos piores índices do país, 56%.
"É muito triste. Isso reflete a estrutura dos serviços de saúde. Se a criança morreu com o diagnóstico de Srag e não foi para a UTI, é porque não deu tempo ou porque não teve acesso a esse recurso", diz o infectologista Francisco Ivanildo Oliveira, gerente médico do Sabará Hospital Infantil.
O pediatra infectologista Renato Kfouri, presidente do departamento de imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, afirma que as crianças menores de um ano têm um risco aumentado pela própria idade. "Elas não têm maturidade do sistema imunológico, são mais vulneráveis para qualquer doença infecciosa."
Para Cândida Martins, infecções graves nesse começo de vida podem trazer impactos para o futuro. "Nos primeiros mil dias do bebê, as células estão sendo formadas e programadas do ponto de vista metabólico. Qualquer fator que leve a um descontrole pode afetar o desenvolvimento futuro e reverberar para o resto da vida".
Se forem considerados todos os outros casos de Srag nesse público infantil, foram 33.407 registros e 1.683 mortes em 2020. Neste ano, foram mais 35.806 casos e 922 óbitos.
Para efeito de comparação, em 2019 –portanto, antes da pandemia– foram 19.142 casos de Srag e 576 mortes nessa faixa etária.
Coleta de material para teste diagnóstico da Covid-19 em criança BBC News Brasil/Getty Images Uma pessoa de luva azul segura um frasco enquanto apoia os dedos no queixo de uma criança. Com a outra mão, ela leva um uma haste flexível em direção a boca da criança. ** Martins diz estar assustada com a quantidade de crianças atendidas com Srag neste ano. "No ano passado, a gente praticamente não viu casos, mas agora há um relaxamento. Os pais estão saindo, estão indo a restaurantes, em supermercado, em shoppings, com crianças pequenas. As pessoas esqueceram que a gente ainda está no meio de uma pandemia."
Além do coronavírus Sars-CoV-2, vários outros vírus que afetam crianças pequenas estão circulando, como VSR (vírus sincicial respiratório) e o influenza, e podem causar quadros de Srag.
O maior hospital pediátrico do país, o Pequeno Príncipe, de Curitiba (PR), registra uma escalada de internações por Srag em menores de dois anos. Entre janeiro e abril, foram 47 casos mensais, em média. Em maio, pulou para 82, e junho fechou com 123.
A volta às aulas dos irmãos mais velhos pode influenciar nesse aumento de infecções dos bebês, segundo a pediatra Cândida Martins. "Atendi um caso de Srag de uma criança de três meses de idade, em aleitamento exclusivo, e os pais em home office. O único fator externo era a irmã frequentando a escola."
Para Rossana Francisco, outro cuidado que precisa ser reforçado é em relação à amamentação de mães infectadas por Covid-19. "A OMS diz que a mãe pode amamentar tomando todos os cuidados. É uma logística muito difícil. Tem que higienizar a mãos, as mamas, estar de máscara, alguém tem pegar a criança para ela amamentar, depois tirar de perto", diz.
Mais de 70% das síndromes em bebês não têm vírus conhecido Por falta ou limitações de testes diagnósticos, o Brasil desconhece o vírus causador de mais de 70% dos casos de Srag em bebês de até dois anos.
Nos casos em que o agente etiológico é conhecido, o coronavírus responde por 67% dos registros. O restante fica por conta dos vírus que tradicionalmente afetam as crianças pequenas, especialmente no inverno, como o influenza, o sincicial respiratório e o adenovírus.
O problema não é novo mas se agravou na pandemia de Covid-19. Em 2019, por exemplo, houve 19.142 casos de Srag, dos quais 58% tinham agente etiológico desconhecido.
Em 2020, com a pandemia de Covid, os casos de Srag quase duplicaram, e a taxa de desconhecimento do agente causador subiu para 78%. Em 2021, que já tem mais 2.000 casos de Srag a mais do que o ano passado todo, 74% dos registros não têm especificação do vírus. "Essa porcentagem de casos desconhecidos é muita alta", diz Martins.
Segundo o infectologista Renato Kfouri, tradicionalmente há muita dificuldade em laboratórios, especialmente os públicos, de fazer o teste diagnóstico de etiologia viral. "Muitas vezes há os painéis que só fazem [testes para] influenza, ou, agora, só Covid, mas não identificam os outros vírus. Esses painéis custam caro, e poucos hospitais públicos têm."
O problema também afeta a rede privada, de acordo com Francisco Oliveira. "As operadoras de saúde não pagam os painéis respiratórios. Eles são caros, e os médicos têm muita parcimônia para solicitar. Só pedem mesmo nos casos em que a gente acha que vai ter impacto na conduta clínica."
Mas, como a maior parte das infecções nessa faixa etária é causada por vírus, o resultado acaba não tendo muita influência na conduta clínica. "Dessas infecções virais, só tenho uma que consigo tratar [com antiviral específico], que é a influenza."
Para Oliveira, conhecer o agente etiológico é muito importante para a epidemiologia –para saber, por exemplo, qual vírus está circulando e quais vacinas são as mais indicadas para a prevenção.
Também pode ajudar na decisão de medicar a criança com antibiótico. "Sabendo que a criança tem uma infecção viral, e não bacteriana, ajuda a dar uma segurada no uso desnecessário de antibióticos."