A tecnologia de mRNA para vacinas foi fundamental no combate ao coronavírus, quando foram desenvolvidos, habilitados e aprovados imunizantes para uso na população em tempo recorde –dez meses–, com mais de 4 bilhões de doses administradas no mundo.
A verdade é que as vacinas de mRNA já vinham sendo estudadas há pelo menos três décadas. Porém, só com a pandemia da Covid-19 essa plataforma foi testada, e seu nível de segurança e eficácia, avaliados.
Agora, cientistas investigam a mesma tecnologia para outros imunizantes que ainda não existem no mundo, como para as chamadas doenças tropicais negligenciadas.
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Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), doenças tropicais negligenciadas (NTDs, na sigla em inglês) são aquelas com incidência maior em países pobres, intimamente ligadas às desigualdades socioeconômicas e de acesso à saúde, e que afetam mais crianças e mulheres. São exemplos de NTDs: dengue, malária, chikungunya, zika, leishmaniose e doença de Chagas, todas transmitidas por vetores (nesses casos, insetos), mas algumas, como a causada pelo verme popularmente conhecido como lombriga, transmitidas por frutas e verduras contaminadas com os ovos.
Para muitas delas, não há ainda prevenção, mas o controle adequado do vetor e a vigilância constante podem ajudar na diminuição dos casos.
Por atingirem países com renda média ou de baixa renda, as NTDs raramente são estudadas pelas indústrias farmacêuticas para o desenvolvimento de vacinas.
"A compra desses imunizantes ficará a cargo dos governos, por isso as companhias farmacêuticas não têm interesse em desenvolvê-las, não há lucro gerado", avalia a biomédica e professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Irene Soares.
O interesse principal em investigar imunizantes que possam ser efetivos contra essas e outras doenças é dos pesquisadores, mas a maioria dos estudos no Brasil acabam descontinuados, avalia a biomédica.
"Nós temos a expertise, o principal desafio é avançar para as etapas após testes laboratoriais para os testes em humanos e obter o registro do produto", afirma Soares.
Soares pesquisa há quase duas décadas uma vacina contra a malária. Em seu projeto, investiga um imunizante capaz de impedir a infecção do protozoário causador da malária responsável pela maioria dos casos no país, o Plasmodium vivax.
A vacina para malária que foi aprovada recentemente pela OMS é baseada em outra espécie, o P. falciparum, responsável pela maioria dos casos na África, e não deve servir para o Brasil. "Cabe a nós, pesquisadores brasileiros, desenvolvermos uma vacina contra malária, do contrário não há interesse das farmacêuticas lá fora nesse imunizante."
Por usar uma tecnologia de proteína recombinante, como algumas das vacinas contra Covid-19, o imunizante precisa ser produzido em biorreatores, enquanto no Brasil o principal meio de produção de vacinas é em ovos embrionados, processo mais lento e ineficaz neste caso.
"Tive bons resultados com os testes em modelos animais, mas minha pesquisa ficou praticamente parada nos últimos dois anos porque não consigo produzir o IFA [ingrediente farmacêutico ativo]", diz.
É por isso que montar um arcabouço de pesquisa científica e inovação é fundamental para garantir a autonomia, explica Ricardo Gazzinelli, pesquisador da Fiocruz-Minas e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Um dos grandes desafios enfrentados pelas universidades é que os pesquisadores fazem a prova de conceito, desenvolvem a plataforma, mas a vacina não vai para frente porque não conseguem produzir os pilotos para os ensaios clínicos, é o chamado 'vale da morte'", diz.
Foi assim com muitas das vacinas desenvolvidas para a Covid-19, como o imunizante Oxford/AstraZeneca, que utilizou a plataforma vacinal de adenovírus de chimpanzé, descoberta por um grupo de pesquisa da Universidade de Oxford e produzida com a farmacêutica AstraZeneca.
Outros exemplos, como as próprias vacinas de mRNA, foram primeiro descobertas por pesquisadores e depois produzidos com as farmacêuticas como Pfizer/BioNTech e Moderna.
Hoje, a busca por vacinas contra doenças tropicais pôde avançar justamente por causa destas parcerias entre plataformas de centros de pesquisa e farmacêuticas, que foram impulsionadas com a pandemia.
É o caso de outra vacina contra malária anunciada este ano, a primeira a atingir eficácia superior a 50% em ensaios clínicos de fase 1 e 2, desenvolvida pela Universidade de Burkina Fasso, na África, em parceria com a farmacêutica Novavax.
Recentemente, um grupo de pesquisadores da Escola de Medicina de Yale conseguiu produzir uma vacina de mRNA para a doença do carrapato (ou doença de Lyme, em inglês).
A plataforma vacinal age não contra o parasita em si, a bactéria Borrelia burgdorferi, mas sim contra o carrapato, causando uma inflamação no organismo que faz com que o animal não consiga mais se alimentar do sangue do hospedeiro –no caso, porquinhos-da-Índia–, impedindo a transmissão do microrganismo.
Vacinas para doenças tropicais negligenciadas devem beneficiar quase 2 bilhões de pessoas em todo o mundo, segundo a OMS, considerando o número de indivíduos que buscam tratamento para pelo menos um tipo dessas doenças a cada ano.
Além destas, a tecnologia de mRNA deve também impulsionar a produção de vacinas sazonais contra gripe mais eficazes, incluindo fórmulas adaptadas para as novas cepas, agindo mais rapidamente frente a novas formas do vírus.