O Brasil vive o momento mais grave da pandemia, com o maior número de casos e mortes diariamente. Nos últimos sete dias, o país registrou mais de 12 mil óbitos em decorrência da Covid-19, com média móvel de 1.832 mortes por dia. No Paraná, estado que até a semana passada tinha a maior fila de espera por leitos, o crescimento de internações despertou um alerta em relação aos cilindros de oxigênio.
Em Londrina a situação também é crítica. O HU (Hospital Universitário), referência para o tratamento da doença no Norte do Paraná, está com o número de pacientes acima da capacidade para covid-19. O Pronto-Socorro do hospital amanheceu nesta segunda-feira (15) com taxa de ocupação de 172%, sendo que 46 pessoas esperam por uma vaga na UTI (Unidade de Terapia Intensiva).
Mesmo diante do cenário preocupante, o 'lockdown' no Paraná terminou na última quarta-feira (10). Para o médico sanitarista Gilberto Berguio Martin, professor do curso de medicina da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o problema pode se agravar ainda mais. "Já temos relatos de serviços no estado que começam a criar protocolos para estabelecer grau de prioridade no acesso aos leitos de UTI”, pontua. Acompanhe mais na entrevista a seguir:
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Bonde - A OMS (Organização Mundial da Saúde) afirmou que o Brasil precisa levar a sério a pandemia de Covid-19. Como chegamos até aqui? O que pode ser feito para reverter este cenário?
Gilberto Berguio Martin - A distribuição do vírus no mundo foi muito rápida. Aqui no Brasil houve uma expansão, num primeiro momento, relativamente dentro dos parâmetros. Sem estímulo ou determinação por decreto, tivemos quase um lockdown por vontade própria das pessoas e os casos cresceram mais lentamente. Mesmo no primeiro pico da doença, em meados do ano passado, o grau de dramaticidade em relação ao que estamos vivendo hoje era menor. Naquele primeiro momento não tínhamos toda a pressão sobre o sistema de saúde que temos agora.
A expansão gradativa de casos e mortes, a negação da doença por parte de autoridades nacionais e a agenda de eventos que causaram aglomerações são questões que podem explicar como chegamos até aqui. No ponto que estamos, acredito que seria fundamental uma única forma de enfrentamento ao problema por parte das autoridades federais, estaduais e municipais. No entanto, o que vemos é o oposto. Infelizmente as perspectivas são ruins.
Bonde - Como a superlotação afeta a dinâmica de atendimento nos hospitais? É possível dizer que este cenário em Londrina e em outros municípios do país é resultado de aglomerações no carnaval?
Martin - A superlotação de casos de Covid-19 interfere em todo o atendimento hospitalar, afetando o tratamento de outras doenças. Estamos com os atendimentos de urgência e prontos-socorros lotados de pessoas infectadas, mas os quadros agudos graves que demandam atendimento de urgência continuam acontecendo.
Mesmo com a decisão de cancelar as festas de carnaval, uma grande parcela da população esteve em eventos clandestinos. Não só no carnaval, mas todas as aglomerações favorecem o crescimento da doença. O vírus não tem asas, é transmitido de pessoa para pessoa. Certamente os eventos que propiciaram aglomerações contribuíram para o momento em que estamos.
Bonde - A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) confirmou a circulação de variantes do coronavírus no Paraná e em outras regiões do país. Isso explica a quantidade de jovens infectados e falecidos em decorrência doença?
Martin - Essas mutações do vírus têm demonstrado maior transmissibilidade e agressividade. Os estudos mostram que as variantes se distribuem mais entre a população jovem, inclusive atingindo crianças, o que não acontecia na circulação da primeira cepa. A existência dessas variantes tem contribuído para uma mudança de característica e intensificação da doença.
Bonde - O lockdown no Paraná terminou na última quarta-feira (10). É o momento para a retomada das atividades? Quais as consequências para o sistema de saúde, saturado com tantos casos de Covid-19?
Martin - Do ponto de vista sanitário, quanto mais restrita for a movimentação de pessoas melhor será a contenção da doença. Já temos relatos de serviços no estado que começam a criar protocolos para estabelecer grau de prioridade no acesso aos leitos de UTI. Vale ressaltar que a pandemia gera um problema de saúde pública, assim como um problema econômico. É importante que o governo combata essas duas frentes ao mesmo tempo. Não adianta um setor ficar atacando o outro. É necessário que se pense em uma solução comum.
Bonde - Ainda há muito o que avançar quando se trata da imunização contra Covid-19 no Brasil. O país conta com duas vacinas, a CoronaVac e a CoviShield. Como avalia esta conjuntura e o projeto de lei que permite a compra de imunizantes pela iniciativa privada? A lei prevê que, durante a imunização dos grupos prioritários, todas as vacinas deverão ser doadas ao SUS (Sistema Único de Saúde). Somente depois da vacinação dos grupos prioritários, as empresas poderão ficar com metade dos imunizantes, para vacinar seus colaboradores ou doar, desde que sejam usados de maneira gratuita. As empresas deverão ceder a outra metade ao SUS.
Martin - Acredito que o governo federal errou na questão das vacinas. Quando os laboratórios começaram a firmar contratos para vender os primeiros imunizantes, o Brasil se recusou a fazer a discussão. Se não fosse o Instituto Butantan se antecipar e fechar o acordo da CoronaVac, começando a vacinação em janeiro, talvez não tivéssemos nem as vacinas que temos hoje. A prioridade em termos de enfrentamento ao coronavírus é garantir a maior quantidade possível de imunizantes ao Brasil. É uma forma de resolver, inclusive, o problema econômico. Isso porque na medida em que a população for vacinada, é possível fazer a economia circular.
Parto do princípio de que as vacinas cientificamente comprovadas devem estar disponíveis para toda população brasileira. É necessário garantir o princípio do SUS que é a universalidade. Muitas pessoas não pertencem aos grupos empresarias. Na conjuntura em que vivemos, marcada pela falta de imunizantes, entendo que se as empresas usarem metade das vacinas para a imunização de seus colaboradores, apenas uma parte da população será privilegiada. Isso caracteriza uma realidade de apartheid. Do ponto de vista social, considero justo que as empresas disponibilizem todas as vacinas, mesmo após a imunização dos grupos prioritários, para que o governo cumpra o PNI (Programa Nacional de Imunização).
Bonde - Como analisa o movimento antivacina neste momento tão crítico da pandemia? Qual conselho deixaria para as pessoas que decidiram não se vacinar?
Martin - Não consigo entender que em pleno século XXI ainda temos pessoas, seja por má intenção ou por desinformação, com dúvidas em relação às vacinas. A ciência está avançada ao ponto de conseguir dar uma resposta tão rápida ao problema da pandemia. Ninguém vai virar jacaré ou morrer por tomar a vacina. São desinformações colocadas na cabeça das pessoas com o intuito de atrapalhar a vacinação. As pessoas que tomarem vacina dificilmente morrerão por complicações da doença.
Bonde - Como avalia o aumento no número de casos de dengue em meio à pandemia do novo coronavírus? Os sintomas de dengue e Covid-19 podem ser confundidos?
Martin - A Covid-19 já ocupou quase todos os espaços de atendimento à saúde, mas os outros problemas continuam. A dengue tem várias características sanitárias que remontam à Covid-19. O aumento de casos de dengue neste momento pode resultar em um cenário bastante complicado, já que os quadros graves de dengue também são urgentes e levam a óbito rapidamente.
Os sintomas iniciais da Covid-19 e da dengue são parecidos, principalmente em relação à febre. Se o quadro febril evoluir para dor de garganta e dificuldade respiratória pode ser um indicativo de coronavírus. E se evoluir para dor no corpo e nas articulações pode ser um indicativo de dengue. Caso apareça sangramento gengival e pontos vermelhos no corpo, pode significar quadro hemorrágico de dengue. É importante que o paciente busque atendimento o mais rápido possível.
*Sob supervisão de Larissa Ayumi Sato.