Em maio deste ano, a OMS (Organização Mundial da Saúde) estabeleceu três metas para a vacinação contra a Covid-19 no mundo: 10% da população de cada país teria de ser vacinada até o fim de setembro, 40% até dezembro e 70% até o meio de 2022.
Apesar dos apelos da organização para que os governos com mais recursos doem parte de seus estoques a países pobres, o primeiro desses marcos já não deve ser atingido. A uma semana do fim do prazo, mais de 50 países não chegaram lá, e só 2% das pessoas em nações de baixa renda receberam ao menos uma dose.
A maioria dos que estão atrasados fica na África, continente que, como um todo, está ainda na faixa de 4% de imunização total -a média da Europa já passa dos 50%. Benin, República Democrática do Congo, Chade, Guiné-Bissau e Etiópia, entre outros, não chegaram nem a 1% da população vacinada.
Como lembram continuamente os dirigentes da OMS, a distribuição desigual das vacinas não é só uma preocupação regional ou altruísta: é um fenômeno que pode comprometer o controle da pandemia no mundo todo, incluindo nos países ricos, porque quanto mais o vírus circula descontroladamente, maior é o risco de que surjam variantes mais perigosas e resistentes à vacina.
A doação de imunizantes também se tornou uma forma de diplomacia. Se no início da pandemia a China tomou a dianteira, os EUA atualmente lideram essa disputa por influência, com o presidente Joe Biden pressionando líderes globais a ampliarem esforços. Na terça (21), o democrata anunciou que repassará mais 500 milhões de doses para a comunidade internacional, totalizando 1,1 bilhão.
Muitas promessas do tipo ainda não foram concretizadas, no entanto. Dos cerca de 600 milhões de fármacos divulgados por Biden no primeiro semestre, 110 milhões foram entregues. Em junho, o Reino Unido anunciou que doaria 100 milhões de doses, mas menos de 10% desse total foi de fato repassado para o Covax Facility, consórcio criado para distribuir os imunizantes aos países de renda baixa e média.
Na quinta (23), ao agradecer a Biden e a outros líderes mundiais pelas novas doações, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, afirmou que, para alcançar as metas estabelecidas, incluindo a de setembro, é preciso aumentar drasticamente o acesso a essas vacinas. "O que precisamos é de uma ajuda realmente robusta e sustentável para que sejam entregues agora -não em seis ou 12 meses", afirmou.
Alguns fatores prejudicaram a redistribuição vacinal nos últimos meses. O surgimento da variante delta, muito mais transmissível e com maior escape vacinal, fez com que governos priorizassem a aplicação de doses de reforço em grupos vulneráveis, segurando os estoques inicialmente destinados ao Covax.
Além disso, à medida que estudos foram mostrando a segurança de algumas vacinas para crianças e adolescentes, os países que já ofereceram a proteção para todos os adultos abriram a campanha também para os menores de idade.
Outro percalço ao cronograma se arrasta desde abril. Após o agravamento da pandemia em seu território, a Índia, que deveria fornecer 1 bilhão de doses para o Covax, parou de exportar imunizantes, retendo sua produção para uso na população local.
Segundo o site de notícias Axios, o governo dos EUA vem pressionando a gestão de Narendra Modi para que retome as exportações, mas uma autoridade indiana afirmou que o recomeço não deve acontecer antes de outubro -e mesmo assim ele se dará de forma gradual.
Diante desse cenário, no último dia 8 o Covax diminuiu em quase 30% sua meta inicial de distribuição para 2021: de 2 bilhões iniciais para 1,425 bilhão. É um número mais realista, segundo o comunicado do consórcio, que prevê que os 2 bilhões só devem ser atingidos no primeiro quadrimestre do ano que vem.
"Reduziram uma meta que já era baixa", afirma o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado,
pesquisador da USP e da Universidade de Paris. "A expansão da delta mudou a programação de todos os países. Com o debate sobre a dose de reforço, os mais ricos começaram a frear doações."
Para o pesquisador, não há mais tempo para alcançar a meta de 10% da OMS ainda em setembro. "A meta de 40% até o fim de 2021 também é muito ambiciosa. O gargalo principal é a África. Tem países muito populosos, como Nigéria, Etiópia, Quênia, com menos de 5% das pessoas imunizadas. A República Democrática do Congo praticamente não começou a vacinação, mesmo o Egito está atrasado."
Dourado lembra também que as negociações na OMC (Organização Mundial do Comércio) sobre a quebra de patentes dos imunizantes contra a Covid não avançaram. "Após os EUA mudarem de posicionamento [passando a apoiar a proposta], existia a expectativa de que a negociação avançasse rapidamente, mas só foi até um certo ponto. De qualquer forma, a curto prazo o que vai resolver é o Covax."
De acordo com a Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA, na sigla em inglês), as empresas atualmente produzem 1,5 bilhão de doses de vacina contra o vírus por mês, o que significa que os países ricos "não precisam mais fazer estoque", diz a entidade em um comunicado.
Projeção da empresa de análise e consultoria em biotecnologia Airfinity citada no texto mostra que, mesmo que os países do G7 vacinem todos os seus adolescentes e adultos e forneçam dose de reforço para populações de risco, ainda haveria 1,2 bilhão de doses disponíveis para redistribuição só em 2021.
Um dos efeitos de estocar as vacinas é que milhões de doses podem perder a validade antes de serem administradas. E não adiantaria doar às pressas, já que os países que as recebem precisam de tempo para organizar a logística de distribuição.
"Muitas vacinas podem ir para o lixo enquanto alguns países mal começaram a vacinar suas populações. Se isso acontecer, será uma tragédia. É fundamental discutir a falta de equidade na vacinação, é uma discussão ética e moral", diz Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
Ele cita como uma das soluções que devem ajudar a aumentar o ritmo da vacinação o lançamento de novas vacinas. "A gente espera ter muitas outras disponíveis, inclusive opções mais baratas e mais fáceis de produzir. Há mais de 300 sendo desenvolvidas, 117 das quais já em fase clínica", afirma.
Em um apelo público aos governos participantes da Assembleia-Geral da ONU, iniciada nesta semana, a OMS pediu um "compromisso genuíno" para que ao menos a meta de 40% de vacinados em cada país até o fim de 2021 seja atingida.
A organização clamou que o mundo faça uma "moratória" das doses de reforço até o fim deste ano, argumentando que destinar essas doses a populações que ainda não foram vacinadas salvaria mais vidas. "Estamos planejando dar um colete salva-vidas extra a pessoas que já têm coletes salva-vidas, enquanto deixamos outras pessoas se afogarem sem um único colete", comparou Mike Ryan, diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS.
Neste mês, Tedros Adhanom criticou o fato de profissionais de saúde, idosos e outros grupos de risco de países pobres estarem sendo deixados em segundo plano. "Não vou ficar calado enquanto as empresas e os países que controlam o fornecimento global de vacinas acharem que os pobres do mundo devem se contentar com sobras", afirmou. "Eles têm o mesmo direito à proteção."