O uso de vacinas transmissíveis para imunizar animais selvagens, impedindo que eles transmitam moléstias para seres humanos e animais domésticos, é uma estratégia factível contra doenças emergentes, desde que esse processo inclua uma série de salvaguardas e mecanismos de transparência, afirma um grupo internacional de pesquisadores em novo estudo.
Num artigo publicado na última quinta-feira (18) na revista especializada Science, a equipe detalha o que é preciso fazer para que a ideia seja aplicada com segurança, levando em conta o que se sabe - e o que ainda não está claro - sobre esses patógenos (causadores de doenças) na natureza e sua interação com a nossa espécie.
Coordenado por Daniel Streicker, da Universidade de Glasgow (Reino Unido), e Scott Nuismer, da Universidade de Idaho (EUA), o trabalho também tem entre seus autores a médica-veterinária brasileira Maria Vitoria dos Santos de Moraes, doutoranda da USP.
Ela estuda a circulação de vírus das famílias Coronaviridae (a do causador da Covid-19) e Paramyxoviridae (a dos vírus do sarampo e da caxumba) em morcegos brasileiros e participou de um workshop internacional sobre as vacinas transmissíveis a partir do qual a análise na Science foi formulada.
Moraes lembra que 75% das doenças emergentes que afetam seres humanos vêm de animais. "Desde que desenvolvidas com responsabilidade, as vacinas transmissíveis são uma possível metodologia para mudar esse quadro", diz ela, que está passando um ano de seu doutorado no Charité de Berlim, principal hospital universitário da Europa.
A ideia de vacinar populações de animais selvagens é menos utópica do que parece -e não envolve o uso de seringas nem a captura dos bichos. A pesquisadora brasileira conta que esse tipo de procedimento é realizado desde o fim dos anos 1980, com a ajuda de iscas, para imunizar animais como raposas, coiotes e guaxinins contra a raiva, tanto na América do Norte quanto na Europa. Helicópteros sobrevoam matas e áreas rurais e lançam as iscas contendo imunizante.
"Isso protege a vida silvestre e os seres humanos que estão em contato com ela. Mas as iscas não são aceitas por outros animais, como os morcegos", explica.
E esse é um problema considerável, uma vez que os mamíferos voadores são reservatórios de uma série de patógenos já conhecidos ou emergentes, sendo provável, inclusive, que eles fossem os hospedeiros original do Sars-CoV-2, vírus da Covid-19.
Daí a ideia das vacinas transmissíveis, que seriam vírus geneticamente modificados para carregar moléculas típicas do causador da doença (os chamados antígenos) contra a qual se deseja imunizar os bichos silvestres. Vacinas que incluem vírus vivos são usadas com frequência tanto em pessoas quanto em animais domésticos hoje. A diferença é que, numa vacina transmissível, o vírus alterado manteria a sua capacidade de se multiplicar e infectar outros indivíduos, criando, em tese, um ciclo virtuoso de imunização.
Levando em conta a maneira como os vírus se espalham em condições naturais, porém, é preciso cuidado na hora de escolher qual patógeno seria modificado para se transformar em vacina. Afinal, a raiz do problema das doenças emergentes é justamente o fato de que, às vezes, eles são capazes de saltar de uma espécie de animal para outro.
Por isso, propõem os autores da análise na Science, é essencial usar vírus exclusivos da espécie que se quer vacinar (ou "espécie-específicos", como dizem os biólogos). "O vírus espécie-específico funcionaria como o vetor que carrega o antígeno da doença de interesse, como o da raiva, no caso dos morcegos, ou o da febre de lassa, no caso dos roedores", diz Maria Vitoria de Moraes.
A ideia é que esse vírus original não cause sintomas graves (o que não é difícil, dada a variedade de vírus que circulam normalmente em todas as espécies de animais). O antígeno tampouco causaria problemas de saúde, mas seria o suficiente para preparar o organismo dos bichos para resistir ao vírus causador da doença propriamente dita, quando eles o encontrassem.
Testes preliminares em laboratório ajudariam a investigar se a dinâmica de transmissão poderia transformar o vírus modificado em algo mais perigoso ou versátil do que o desejado antes que ele fosse testado em ambientes naturais. Por fim, uma última etapa de análise poderia ser realizada em espaços confinados ou em ambientes naturalmente "cercados" (como ilhas), o que ajudaria a verificar possíveis problemas da transmissão sem o controle laboratorial estrito.
A abordagem poderia ser muito útil para minimizar as chances de transmissão de vírus como o Ebola (que também afeta grandes símios, como chimpanzés e gorilas) ou os do grupo dos arenavírus, que afetam roedores e ocorrem no Brasil. A febre amarela, com circulação em macacos brasileiros, e o influenza (da gripe), com ampla circulação em aves silvestres, também poderiam estar na mira dessa abordagem. "No caso da febre amarela e do influenza, ainda não há pesquisas publicadas", ressalva Moraes.