Mãe de três crianças, grega e morando no Brasil nos anos 1970, Vassiliki Anargyrou aconselhava a filha mais velha a dormir a maior parte do dia. Os médicos tinham dito que a menina não passaria dos cinco anos na luta contra a "doença do Mediterrâneo".
"Ela queria me poupar da anemia", lembra Merula Steagall, 55, diagnosticada com talassemia maior. Os braços revelam as picadinhas que salvaram sua vida, nas últimas cinco décadas, da forma grave de anemia genética.
Para driblar os cuidados da mãe e negociar com o tempo que lhe restava, fazia cursos de culinária e praticava as receitas em casa. As lembranças da juventude são saboreadas por Merula, que não virou cozinheira, enquanto a panela faz xique-xique no fogo. É quase hora do almoço.
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Ainda que tenha montado uma importadora de itens de cozinha, o chamado da saúde foi maior. Merula é referência no mundo no apoio a pacientes com cânceres e doenças do sangue, como os linfomas, leucemias e a talassemia.
À frente da Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia) e da Abrasta (Associação Brasileira de Talassemia), ajudou a estruturar a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. Fez com que planos passassem a arcar com despesas dos transplantes de medula, entre outras vitórias ao longo da carreira.
No último ano, durante a pandemia, sua saúde se fragilizou. A massa pulmonar originada pela talassemia a deixou fraca e ofegante. Passou a ir duas vezes por semana ao hospital para receber transfusões sanguíneas. Acostumada a um ritmo intenso de trabalho, a administradora pisou no freio.
Tomou a difícil decisão de iniciar a transição da governança na Abrale com a contratação de uma CEO para cuidar do dia a dia.
O terraço do seu apartamento ora era escritório, ora mesa de jantar, onde divide a longa vista para o pôr do sol paulistano com familiares e amigos. "A vida é um espetáculo", diz sempre. Na cozinha, ali do lado, suas assistentes ajudam no preparo das refeições. Merula vai enumerando as receitas com riqueza de detalhes que, dado o avançado da hora, dão água na boca.
"Gosto de fazer delícias gregas, do mediterrâneo. Frutos do mar, berinjela, peixes. Polvo é minha especialidade."
Certa de que a alimentação ajuda a regular a saúde e o humor, ela foi atrás de propriedades medicinais. "Comecei a estudar condimentos que podiam aumentar a imunidade e anti-inflamatórios", diz.
Contou com uma mãozinha do marido, Denisarth Steagall. "Ele ia à barraca dos temperos na feira e fazia uma ligação de vídeo comigo pelo WhatsApp."
As especiarias escolhidas a olho começaram a encher sua bancada. "Fui experimentando nas minhas delícias, mas era trabalhoso abrir vários frascos. Juntei todos os temperinhos, fiz um mix. No lugar de abrir 30, abria um pote."
O segredo culinário de Merula Steagall é uma mistura de 17 sabores. Cúrcuma, chimichurri, cenoura
desidratada, páprica doce e pimenta da Jamaica em pó são alguns deles.
A mãe Villy foi das primeiras a experimentar. Gostou. O filho mais velho, Daniel, levou para os Estados Unidos. A filha Dina, vegana, aprovou o tempero em seu falafel.
Profissionais de saúde também ganharam potes do Merula Mix. "Começamos a trocar receitas e fotos de pratos", conta Rodrigo Gobbo, 47, radiologista do Centro de Medicina Intervencionista do Hospital Albert Einstein.
"Adoro comida mediterrânea e ela deu dicas de como preparar polvo. Meus pratos ficaram mais saborosos com o tempero dela", completa.
Com talento para negociar e urgência em manter a sustentabilidade da Abrale e da Abrasta, Merula transformou o passatempo em recurso. Reuniu-se em casa com a vizinha Paula Franco, diretora da Miss Croc, e uma nutricionista. O tempero ficou em desenvolvimento por quatro meses, levando em conta propriedades que pudessem beneficiar a saúde, além de trazer sabor e afeto para os pratos.
O Merula Mix é comercializado pela empresa, que profissionalizou a linha de produção. "O que nos deixa mais feliz com a parceria é unir alimentação saudável a uma causa que irá ajudar diversas pessoas", afirma Paula Franco.
Todo o lucro com o tempero, vendido de maneira virtual, é revertido para projetos da Abrale, que incluem apoio jurídico e psicológico a pacientes onco-hematológicos.
"Começamos com 500 unidades durante três meses", diz a administradora, que aposta nas festas de final de ano como oportunidade de venda. "Depois vamos avaliar a comercialização para restaurantes e hospitais." É meio-dia em São Paulo; noite na Grécia. Mesa posta para mais uma refeição na casa da empreendedora social e ativista que segue driblando o tempo que lhe foi dado. "Meu talento é negociar, mas tenho minha parte de chef."