Se uma receita, mesmo seguida à risca, sempre tem um gostinho diferente de acordo com a mão do cozinheiro, fica fácil de entender como pratos típicos de outros países ganharam versões abrasileiradas por aqui. Na falta de um ingrediente, diante do clima tropical, não dominando um detalhe da técnica de preparo da comida ou improvisando um utensílio de cozinha. Pronto. É o suficiente para a massa não ficar no ponto almejado. Desandar o recheio da sobremesa. E daí, a receita acaba por reiventar-se.
Essa é a maravilha da gastronomia. Poder ganhar o sabor da terra, do clima, da cultura de cada lugar. Os ingredientes são substituídos sempre que necessário, desde que não provoquem conflitos. As adaptações quando bem feitas conquistam a língua do povo e entram no cardápio permanente da culinária de feirinhas e carrinhos na rua: cachorro-quente, tapioca, hambúrguer, coxinha, pizza, bolo de chocolate. Foi o caso do crepe no palito. A massa quentinha com recheio de queijo, salsicha e "sonho de valsa" virou fast food.
Em alguns lugares até mudou de grafia, trocou o "C" pelo "K". Chegou a ser batizado de Kreps. "Acredito que seja recente essa invenção, pelo maquinário utilizado. É mais comercial, não há sofisticação, é servido no palito", opina o chef François Fournier, do Delices de France, no Batel. "O crepe feito na França é bem fininho, servido geralmente dobrado, com recheios salgado ou doces, finalizado com molho ou caldas", compara ele, que prepara o famoso Crepe Suzette flambado na manteiga, suco de bergamota e contreau.
Prato mais elaborado, o crepe tem a mesma base do Kreps das feirinhas, trigo e ovos. "Deixo a massa descansando na geladeira, por uma hora, para o glúten dá a liga. E aí passo camada finíssima da frigideira. Na França, o crepe inicia a criança na cultura da culinária", informa. "É herança dos romanos, que relacionava o preparo do crepe à prosperidade. Se a criança consegue virar o crepe jogando-o no ar, com uma mão só, e segurando uma moeda de ouro com a outra, é garantia de dinheiro", conta.
O nome é o mesmo
Outra comida que apenas carrega o nome do prato original, porque do sabor e da forma de origem ficou longe, é o churro. O doce, uma massa pré-cozida modelada também em máquinário especial, é frita e recheada com chocolate ou doce de leite cremoso. É uma tentação. Há quem sirva o doce feito na hora, sequinho e com recheios de boa qualidade. Como a loja da Tia Su, no Shopping Popular do Capão Raso. A estufa com churros graúdos e douradinhos enchem a boca d’água.
"Trabalhamos com o melhor doce de leite do mercado. O churro não fica muito tempo na estufa, porque fica duro. Fritamos de acordo com o movimento de clientes", conta Fabrício Cardoso, dono do negócio. "Nossa receita vem sendo melhorada, há 20 anos, pela minha mãe, Soely. Essa última leva fubá na massa. Mas temos nossos segredinhos", disse ele que também vende crepes no palito, que assim como o churro, custa em média R$ 2,25.
A massa pré-cozida, o fubá, além do açúcar e a canela em volta do doce são as semelhanças com a receita do churros espanhol. "No século 18, tinha base de milho. Depois, os espanhóis passaram a fazer com trigo também. Eles comem churros no café da manhã, molhando no chocolate quente. É bem comum. A massa é frita em espiral formando discos de cerca de 50 centímetos de diâmetro. Os vendedores cortam e servem os palitos em saquinhos", explica chef Charles Scheindt, do Santillana Lounge Bar, na Água Verde.
Segundo Scheindt, o tradicional churros espanhol é preparado numa churreria de São Paulo, há mais de 50 anos, que trouxe o doce ao Brasil. Na cidade, provavelmente, foi transformado na apresentação que se popularizou nas ruas. "Aqui é o único lugar do mundo que se come churros com recheio dentro", afirma o chef, que elaborou minichurros (R$ 11,90) para o cardápio do Santillana. "A parte difícil é dar forma e fritar o churros. A massa é moldada com um saco de confeiteiro diretamente na frigideira. Fazemos um pequeno espiral que vai inteiro no prato", detalha.
A massa, que leva trigo, manteiga, noz moscada e canela, é escaldada com água quente. Depois é batida com ovos até ficar com textura cremosa. "Servimos com sorvete de chocolate branco e cobertura de chocolate e também com sorvete de canela, calda de cassis e banana caramelada", descreve Scheindt. De fato, a massa é bem diferente da que a maioria está habituada. As especiarias perfumam o churro, que é crocante por fora e deliciosamente macio por dentro. Derrete na boca. O sorvete de canela - de fabricação própria - faz combinação suave. A banana acompanhando traz a perfeição. É de comer rezando.