O Brasileirão 2024 começa neste sábado (13) já com um assunto pendente para as próximas edições: o gramado sintético é prejudicial à saúde dos jogadores? O plano é juntar informações dos clubes para tirar conclusão com base no que ocorre em solo nacional.
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Para a Comissão Médica da CBF, dizer que a grama artificial é pior do que a natural é mais uma questão de opinião do que fruto de um balizamento científico.
A dificuldade para encontrar estudos definitivos sobre o tema envolve alguns elementos, segundo Jorge Pagura, presidente do órgão: amostragem de jogos, a diferença na composição do campo e a velocidade de evolução do sintético.
A Fifa permite os sintéticos e há estudos mundo afora que apontam para os dois lados: é possível achar documentos apontando maior incidência de lesões, e outros dizendo o contrário.
A CBF vai reativar neste ano o mapa de lesões. Os médicos dos clubes serão obrigados a inserir as informações de lesões em um sistema. A CBF vai checar o tipo da lesão e em qual gramado ocorreu.
A comissão fará reuniões com médicos de clubes que têm sintético (Palmeiras, Botafogo e Athletico) e rivais que jogam em grama natural. Posteriormente, dirigentes da Comissão de Clubes serão ouvidos.
"A comissão médica, até o momento, não encontrou condição significativa alguma de evidência que mostre grande diferença de um gramado para o outro. O que temos estatisticamente é que não há uma diferença nítida", disse Jorge Pagura.
Debate interno
Entre os presidentes de clubes do Brasileirão, o debate no último conselho técnico da CBF foi acalorado. Não chegou a haver votação neste ano para o veto do sintético -a CBF reforçou que o prazo ficaria muito curto para mudanças de terreno já em 2024. Mas o assunto vai prosseguir em pelo menos duas esferas antes de voltar ano que vem: médicos e dirigentes que representam a comissão.
"Vamos discutir isso do ponto de vista científico, antes de discutir com a comissão de clubes, que é formada por pessoas que não são ligadas à parte científica e merecem uma satisfação nossa com base, sem viés", disse Pagura.
A comissão não vai envolver os jogadores nesse debate inicial. Ela entende que não tem prerrogativa de analisar o tema pelo prisma do jogo. Prefere focar na busca por dados estatísticos sobre saúde.
Alguns jogadores de clubes que mandam partidas no campo natural contaram ao UOL, sob condição de anonimato, que sentem dores mais fortes nas articulações após partidas no sintético. Outra reclamação é que o pé fica mais preso no terreno artificial.
No Pesquisão UOL 2023, 53,5% dos jogadores consultados de forma anônima disseram ser contra o uso de gramado sintético nas partidas de futebol.
"Conversei com fisiologistas e médicos. Vamos achar opiniões favoráveis e contrárias. Mas é baseado nos artigos, no que os atletas falam. Diretorias de clubes citam reclamações dos atletas", disse Alfredo Sampaio, presidente da Fenapaf.
O composto de cortiça -material usado na fabricação de rolhas de vinhos e espumantes- é o que preenche o campo do Nilton Santos, do Botafogo. E, mais recentemente, o do Palmeiras.
No Allianz Parque, saiu o termoplástico. A cortiça, segundo os fornecedores, traz uma sensação maior de maciez e deixa a temperatura mais próxima à do gramado natural.
O problema do termoplástico, a longo prazo, foi experimentado pelo próprio Palmeiras: ele derreteu, passou a se soltar e grudar na chuteira dos jogadores. O terreno ficou mais instável.
No caso da cortiça, a falta de manutenção pode fazer com que haja compactação (formação de blocos) e um desequilíbrio de quantidade entre as partes do campo. O jeito para evitar isso é trabalhar com frequência com uma máquina que tem escovas para manter o material solto e bem distribuído.
"Os parâmetros do Allianz estão melhores do que no ano passado. Estão mais semelhantes à grama natural. Nos testes, tem o índice mínimo e máximo. E dentro desse mínimo e máximo, você está mais perto ou mais distante da grama natural. Com esse sistema novo, a grama chegou muito próximo à grama natural, segundo o laboratório responsável", disse Alessandro Oliveira, CEO da Soccer Grass, responsável pela instalação do gramado no estádio do Palmeiras.
Estatísticas 'made in Brasileirão'
Com o mapa de lesões, os clubes serão obrigados a fazer um relatório sobre as ocorrências médicas que tiverem. Assim, a expectativa é de uma amostra ao término do Brasileirão de como foi o comportamento dos jogadores e a incidência dos problemas médicos.
O mapa já funcionou em temporadas anteriores, antes da pandemia, e foi importante para diagnosticar o volume de lesões na cabeça. Como resultado, a CBF criou um protocolo de concussão. Agora, o foco é a discussão sobre o sintético.
"O mapa é para termos um levantamento nosso. É importante para não nos basearmos em trabalhos que vêm de fora do Brasil. Alguns acham que gramado sintético pode ter uma carga muscular maior, outros que pode forçar mais o tornozelo. Mas em trabalhos desse tipo, você tem que ter evidência nítida, com uma estatística significativa para dizer se um gramado machuca mais ou menos. Não podemos ter achismo", disse Pagura.
Para os clubes que aderiram ao sintético, o gramado é uma solução não só para o aspecto comercial -possibilitando o uso mais fácil para shows-, mas também para o volume alto de jogos típico do futebol brasileiro.
As coberturas de novas arenas também dificultariam a entrada de luz solar na totalidade, o que torna a manutenção da grama natural mais complexa.
Uma análise tem resultado pró-sintético
Um artigo de abril de 2023, publicado na revista científica The Lancet, fez um levantamento de vários estudos para tentar mapear o que as estatísticas disponíveis revelaram.
O trabalho foi feito por médicos pesquisadores finlandeses. A metodologia foi buscar artigos, relatórios ou estudos na base de dados de quatro plataformas: PubMed, Scopus, SPORTDiscus e Web of Science.
A partir de então, houve um afunilamento, concentrando-se em 22 estudos, todos focados no futebol.
O resultado? Homens e mulheres tiveram incidência menor de lesões nas extremidades baixas do corpo (como tornozelo). Atletas profissionais inseridos na pesquisa também tiveram menos lesões no sintético, enquanto não foi notada diferença entre os jogadores amadores.
Mas até a definição do que é lesão varia entre os documentos analisados. "Alguns estudos classificaram 'lesão' como qualquer evento que levou à interrupção de treino ou jogo. Outros, definiram como evento que requereu avaliação médica", pontuaram os autores.
A interpretação final após a análise foi a de que a incidência geral de lesões no futebol é menor em grama artificial do que na natural.
"Baseado nesses achados, o risco de lesões não pode ser usado como um argumento contra o gramado artificial, ao considerar a superfície ideal para jogar futebol", acrescentaram os autores da análise.
NFL é parâmetro?
Os defensores da grama natural recorrem a alguns estudos produzidos nos Estados Unidos, por exemplo, para apontar risco à saúde dos jogadores que praticam esporte no sintético.
Um dos estudos foi publicado em 2018 pelo The American Journal of Sports Medicine, assinado por médicos especialistas em ortopedia e biomecânica.
O método de análise foi levantar as lesões relatadas entre as temporadas 2012 e 2016 da NFL, a liga profissional de futebol americano.
A partir daí, os pesquisadores desenvolveram uma taxa de incidência para delinear em que tipo de campo ocorreram as lesões, quais foram as lesões reportadas e se elas eram resultado de contato ou não.
A conclusão foi a de que, no sintético, houve aumento de 16% na média de lesões nas extremidades baixas por jogada realizada, na comparação com a grama natural.
Outro estudo de 2019, também publicado no The American Journal of Sports Medicine, considerou dados de dez temporadas da NCAA (liga de futebol americano universitário): de 2004/05 a 2013/14.
Os níveis de lesões de ligamento nos joelhos foram três vezes maiores em campos sintéticos na comparação com os de grama natural.
As lesões consideradas foram nas extremidades baixas do corpo. "A associação foi notável quando houve nenhum contato ou contato superficial" nas lesões analisadas.
Esse é o tipo de análise que, inclusive, circula entre engenheiros agrônomos e fornecedores de sementes para campos de grama natural. Nesse caso, o aspecto do interesse econômico entra em campo.
"A gente avalia também os trabalhos da NFL, mas são jogos diferentes. O tipo de tração é diferente. Temos que trabalhar com futebol. A concussão na NFL ou no rúgbi é diferente. Temos que avaliar as coisas do futebol. Quantos arranques tipo os da NFL temos no futebol? Não posso negligenciar o que acontece lá, mas são esportes diferentes", disse Pagura.
Por que a Fifa libera?
A liberação dos estádios após a instalação do gramado sintético só acontece após certificação feita por um laboratório credenciado pela Fifa.
Os testes envolvem rolagem e quique da bola, nivelamento do campo, absorção de impacto, tração na superfície (se prende muito ou não) e outros itens que simulam o reflexo do gramado em um jogador.
Para os sintéticos, a Fifa criou o Quality Program. Inicialmente, ela regulamentou o padrão para o gramado artificial com intuito de facilitar o desenvolvimento do jogo -em áreas com dificuldades climáticas e em locais que permitam uso constante do campo.
A Fifa não publica estudos específicos que digam se uma superfície é melhor para a saúde dos jogadores do que outra. A entidade não respondeu aos questionamentos do UOL sobre o tema.
Mas a Fifa não usa o sintético na Copa do Mundo, a competição mais importante. Ela até fez isso na edição feminina de 2015, no Canadá, mas as jogadoras reclamaram. Os Estados Unidos precisarão se adaptar para a Copa 2026.
Na Europa, todas as principais ligas proíbem gramado sintético. O movimento de veto mais recente ocorreu na Holanda, por decisão dos clubes da Eredivisie. Há um período de adequação até a temporada 2025/2026.
"Nas grandes ligas da Europa é proibido. Isso por si só já diz o quanto negativo é. Por que aqui vamos usar? Estamos na contramão", disse o presidente da Federação Nacional dos Atletas de Futebol (Fenapaf), Alfredo Sampaio.