Se sediar a Copa do Mundo fosse um jogo de futebol, o Qatar estaria na retranca há mais de uma década.
A um ano do início do torneio, o país continua a se defender para mudar a percepção de ser uma nação hostil a minorias que desejarem viajar para assistir aos jogos. Também lança ações de relações públicas para mostrar avanços na questão do respeito aos direitos humanos.
"É uma loucura. Vão todos presos. Mas quando isso acontecer, eu já estarei morto", previu em 2010 o presidente da AFA (Associação Argentina de Futebol), Julio Grondona, após o país do Oriente Médio ganhar o direito de receber a competição.
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A frase, dita a jornalistas amigos, embasbacados pelo Qatar ter vencido os Estados Unidos na disputa para abrigar o Mundial em 2022, foi profética. A escolha detonou a investigação do FBI por corrupção e suborno, conhecida como Fifagate. Resultou na prisão de dirigentes e empresários sul-americanos, no banimento de cartolas e na renúncia do presidente da Fifa, Joseph Blatter, em 2015. Grondona morreu em 2014.
Levados em conta os projetos de infraestrutura, estádios e todos os equipamentos necessários para realizar a competição, o país vai investir cerca de US$ 220 bilhões na organização (R$ 1,25 trilhão pela cotação atual). A Rússia gastou US$ 12 bilhões (R$ 68,3 bilhões) para viabilizar a Copa de 2018.
São 11 anos em que o Qatar convive com acusações de descaso com direitos humanos, restrições à comunidade LGBTQIA+ e de descaso com a massa trabalhadora imigrante. O país é um emirado absolutista e hereditário, controlado pela Casa de Thiani desde o século 19.
Em abril deste ano, as seleções da Noruega, Alemanha, Holanda, Áustria, Dinamarca e Irlanda entraram em campo em partidas das eliminatórias com camisas ou faixas pedindo respeito aos direitos humanos.
A situação dos operários imigrantes envolvidos nas construções dos estádios e da infraestrutura para a Copa do Mundo é motivo de polêmica desde 2010. As denúncias de entidades internacionais falam na inexistência de proteções trabalhistas para estrangeiros, jornadas exaustivas em temperaturas que podem superar os 50°C no verão, moradias precárias e, principalmente, a kafala.
Trata-se do sistema que proíbe o trabalhador estrangeiro de trocar de emprego, a não ser que o seu patrão atual assine uma carta autorizando a mudança.
"A um ano para a Copa do Mundo, pouco mudou. Operários têm muita dificuldade para trocar de emprego. Muitos deles continuam a sofrer descontos irreais nos salários ou estes não são pagos. Eles deveriam levar os casos à Justiça, mas o acesso a ela é quase impossível", afirma May Romanos, pesquisadora para o Golfo Pérsico da Anistia Internacional do Reino Unido.
"Há problemas com as condições para os trabalhadores, especialmente no verão. Nossos consultores dizem que as medidas tomadas até agora não são suficientes para protegê-los. Não há investigação apropriada para as mortes inexplicáveis nas construções dos estádios e obras de infraestrutura. Isso impede as famílias de buscar compensação", completa.
A Anistia Internacional descreve o Mundial no Qatar como "Copa do Mundo da vergonha".
O Supremo Comitê para a Entrega e Legado, responsável pela organização do torneio, contesta essa a visão. Em texto divulgado pela Fifa, declara ter trabalhado de "maneira incansável para proteger a saúde segurança e bem-estar dos trabalhadores".
"Temos orgulho do que conseguimos nos últimos dez anos e acreditamos que nossas ações criaram uma referência de excelência, não apenas no Qatar, mas na região e ao redor do mundo", disse Hassan Al Thawadi, secretário-geral do comitê.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, em dezembro de 2019, ele pediu que os torcedores estrangeiros presentes no país para o evento esportivo estivessem de mente aberta e abraçassem a cultura do Qatar.
Nos últimos anos, a nação árabe assinou tratados quanto a condições de trabalho e aboliu, oficialmente, a kafala. Mas a Anistia Internacional assegura, em relatório publicado no mês passado, que o sistema continua a ser utilizado.
"O relógio está correndo, mas não é tarde demais para colocar em prática o que está no papel. É hora das autoridades qataris abraçarem de verdade as reformas trabalhistas. A complacência das autoridades tem deixado milhares de pessoas sob o risco de exploração de empregadores inescrupulosos. Depois da Copa do Mundo, o destino desses trabalhadores que continuarem no Qatar será ainda mais incerto", queixa-se Mark Dummett, diretor de questões globais da Anistia Internacional.
As obras de infraestrutura (inclusive uma nova cidade, Lusail, para receber jogos do Mundial) e estádios fez a população do Qatar crescer quase 150% nos últimos dez anos graças à massa de trabalhadores migrantes. Ela representa cerca de 2,4 milhões dos 2,7 milhões da população local. Os qataris foram a elite econômica e social.
Reportagem do diário britânico The Guardian revelou que 6.500 operários morreram desde que a nação recebeu o direito de sediar a Copa. O governo contesta esse número.
Outras entidades que defendem os interesses de trabalhadores consideram um avanço o fato de as leis terem mudado.
"Empregadores que negam direitos dos operários e cobram taxas ilegais serão processados. Acreditamos que a cultura de impunidade em que os empregadores não reconhecem as novas leis trabalhistas está acabando. Trabalhadores no Qatar têm direitos e estão protegidos com leis alinhadas com padrões internacionais", disse Sharan Burrow, secretária geral da ITUC (sigla inglês para Confederação Sindical Internacional).
Trata-se de uma mudança de opinião. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2015, ela disse que "o maior evento esportivo do planeta não pode acontecer sob a sombra de um regime de escravidão moderno".