Às vezes é preciso afirmar o óbvio: de real, os reality shows têm bem pouco. Para usar a palavra da moda, são uma narrativa na qual logo cedo os personagens são estabelecidos. E o caráter ficcional, por assim dizer, desta edição do Big Brother de agora é levado ao paroxismo.
Na segunda-feira passada (16), Tiago Leifert chamou todos os participantes à sala e revelou a existência do novo coronavírus. Disse que a situação está feia. Que a Itália é um dos piores países. Que não vai mais haver plateia no programa para evitar aglomeração. Que é preciso lavar as mãos e dar o exemplo para o Brasil.
Chororô. Uns ficam calados, outros perguntam pela família, agora vetada de ir à plateia. Outro vai para a cozinha, circunspecto, cortar silenciosamente uma lasanha.
O mesmo ocorreu em outras versões do programa pelo mundo. Quase ao mesmo tempo, os participantes alemães também foram informados da pandemia, com as mesmas reações –o apresentador fez a mesma piada que Leifert, dizendo ser aquela a casa mais segura do mundo no momento, mas também mostrou imagens de ruas vazias em cidades europeias.
As edições de Austrália, Canadá e Itália também informaram os participantes. Neste último país, onde a pandemia já causou mais mortes, eles receberam autorização para ligar para a família –o fim do programa foi antecipado de 27 de abril para o dia 8.
De repente, o Brasil confinado aqui fora assiste aos confinados lá de dentro. Só que lá tudo está ao contrário. O confinamento na casa, vendido como duro e como algo que requer resistência (como ficar tanto tempo trancado?), parece até doce.
Há companhia, distribuem-se prêmios para os mais valentes nas provas e o sofrimento que os participantes infligem aos próprios corpos é voluntário. Na última quarta (18), por exemplo, a casa do BBB devia ser uma das únicas do Brasil onde havia uma festa, tipo de evento vetado em toda a parte por questões sanitárias.
O cinema documental sabe há muito tempo que nada daquilo é verdade, mas a TV ainda gosta de nos vender essa ilusão –e muita gente gosta de comprá-la. A presença das câmeras, escondidas dos olhos do público, por si só já altera a realidade que espera-se que seja somente documentada por elas.
A narrativa que se desenrolava lá dentro era a mesma com a qual o país se debatia aqui fora, pelo menos até o vírus, desde o período que antecedeu a última eleição: a história de cada um entrincheirado em sua identidade, em busca de justiça social.
Primeiro, havia o grupo de "brothers" que tramava um complô contra as "sisters", no embate do feminismo contra o machismo. Derrotados os vilões, o grupo de moças bem intencionadas se volta contra um dos dois únicos participantes negros, Babu.
Dizem que sentem medo dele. Tentam tirá-lo da casa. Comparam-no a um monstro. O público imediatamente acusa o racismo daquelas atitudes e comportamento.
São essas as pautas que dividem esquerda e bolsonarismo no país. Enquanto aquela levanta bandeiras de mulheres, negros e LGBTs, este acusa um avanço do politicamente correto.
O mercado de entretenimento aprendeu a lucrar com esse debate. Basta ver a quantidade de filmes, livros, músicas e exposições de sucesso que repisam o mesmo assunto nos últimos anos.
Talvez essa narrativa explique o sucesso desta edição do BBB. A anterior havia tido uma das piores audiências desde a importação do reality para o país, em 2002.
Mas o cenário mudou. Aqui fora, sem que as questões levantadas pela militância identitária tenham encontrado solução –alguém lembrará que uma das infectadas no Rio de Janeiro era empregada doméstica e que há chances de ela ter contraído o vírus da patroa–, a história é outra.
A fragilidade do corpo diante de uma pandemia, as mortes que já se contam aos milhares, tudo é um chamado para agir em coletividade.
Na sexta-feira (20), populares batiam panelas contra Bolsonaro e, em seguida, aplaudiam os médicos, até ontem acusados de bolsonaristas pela esquerda. Governadores até outro dia alinhados ao presidente passaram a travar uma queda de braço com ele.
Os brasileiros são convocados a uma unidade não sob o emblema da pátria, como no slogan ''Brasil Acima de Tudo'', que sugere encerrar o embate identitário, mas sob a consciência da finitude.
O lado irreal –e a ironia– da televisão que promete só mostrar a verdade irrompe de forma explícita. Sintoma maior disso é que, lá dentro, as mãos ainda pareçam não ter recebido o significado que têm aqui fora: o de um veículo para a doença.
O participante Daniel, visto como burro pelo público, mexia com o dedo indicador o café que todos os participantes iam depois tomar. Em outro momento, após tocar em uma barata, ele se recusava a lavar as mãos –e se mostrava irredutível diante dos protestos dos colegas.
''Barata não tem vírus'', dizia, antes de levar a mão ao rosto. Isso apenas um dia depois de todos receberem orientações para lavarem as mãos com frequência.
A irrealidade é reforçada pelas fanfics que pipocam na internet. Fanfic, quando o mundo online ainda era mato, era a palavra usada para histórias apócrifas escritas por fãs de livros e filmes com os personagens dessas obras. Hoje também há histórias sobre pessoas reais, políticos, músicos.
Uma das de maior repercussão dizia o seguinte: toda a população é eliminada pelo coronavírus, os BBBs são os últimos sobreviventes e criam uma vacina, a única salvação, mas Daniel a deixa cair. E grita: "Xente! Me desculpa!''.
Os paralelos com a ficção não tardaram a surgir. A série "Dead Set", de 2008, imaginava um apocalipse zumbi que começava na noite de paredão do Big Brother britânico. Pelo menos a princípio, eles são os únicos protegidos. A série tinha ex-participantes no elenco.
A situação fora da casa não tem nada de cômica ou irreal, obviamente. É quando saírem da casa que os participantes entrarão no verdadeiro confinamento.