Rafael Cortez conseguiu criar para si uma área de atuação sem radicalismos, com um gosto entre o ácido e o suave, preservando ética no universo que, muitos acreditam, até a própria ética deva ser implodida pelo riso. Cortez acaba de ser contratado pelo Vídeo Show. Está na Globo. "Em muitos pontos da carreira, é um novo desafio. Meu humor tem de ser desmembrado, agora, para família. E a visibilidade é incrível."
Uma outra frente em sua vida, talvez menos midiática, reflete uma especialização profunda trazida por anos de idolatria. Cortez é um expert em Nara Leão. Músico preparado em seus primeiros anos de estudo (entre os 17 e 22) para ser um violonista de concerto, não tem mais essa preocupação. "O violão que toco hoje é mais descompromissado, está a serviço de outras coisas. O projeto dos meus olhos agora é o da MDB, a Música Divertida Brasileira. Eu resgato composições engraçadas da MPB e as apresento em outras versões. Obras engraçadas de Tom Jobim, Chico Buarque, Adoniran Barbosa, Jorge Ben, Moreira da Silva." O disco, gravado com a banda Pedra Letícia, vai sair em julho.
Nara Leão está entre suas três paixões. Nara, Maria Bethânia e a violonista Badi Assad. Mas é Nara quem ganha a palestra cheia de profundidade, com audição comentada, pesquisa e histórias saborosas.
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O encontro será nesta sexta, 15, a partir das 21h, no Espaço Uirapuru, uma espécie de centro de estudos da música brasileira, na Vila Mariana. O bate-papo é feito em uma sala acusticamente preparada para se ouvir discos de vinil, com equipamentos de ponta.
O sobrevoo de Cortez é criterioso. As obras de Nara serão contextualizadas, mas não vão jogar o jogo fácil. "Vou apresentar 15 músicas fundamentais na história da Nara. A lógica é mostrar o que seria interessante para ela, não necessariamente para o público. Se fosse o contrário, ficaríamos reféns de A Banda, João e Maria, Amor nas Estrelas, Opinião." Os traços da história e da personalidade aparecem entre as canções. "Nara era uma mulher com grandes conflitos, e ao mesmo tempo com uma firmeza do que queria. Se, pessoalmente, ela vivia o drama de não ter certeza vocacional, e o drama da doença nos últimos 10 anos de vida (ela morreu vítima de um tumor cerebral, aos 47 anos, em 1989), era profissionalmente muito engajada. Brigava com diretor artístico da gravadora por não querer que mexessem no disco que gravou em Paris, brigava por querer, sim, colocar Roberto e Erasmo no disco porque sabia que aquele era o momento de fazer isso. Quero mostrar a contradição da mulher que mantinha seus dramas pessoais com a mulher que era revolucionária."
Duas gravações de Nara terão gosto de exclusividade. São registros raros, que chegaram às mãos de Cortez graças à confiança de Marco Antonio Bombet, o último parceiro de Nara, que ainda guarda músicas nunca lançadas pela cantora. Vai Passar é tocada por Nara ao violão na Boate People, em 1985. É Tarde Demais, de Carlos Lyra, conta apenas com uma gravação caseira de Nara. A audição vai trazer também as primeiras fases, que frustraram de certa forma as expectativas que imaginavam Nara se rendendo à bossa nova. "Vou mostrar coisas que ela gravou dos sambistas, como um de seus primeiros LPs. Vou contar sobre essa atitude, de como o pessoal da bossa ficou chateado com ela nesse momento."
Os pioneirismos de Nara caminhavam juntos com a escolha de seu repertório. Mesmo pagando caro por se recusar a andar pelos caminhos fáceis, ela preferia seguir o próprio instinto. "Nara gravou Chico Buarque de Hollanda pela primeira vez. É graças a ela que temos hoje Sidney Miller. Graças a ela que temos Maria Bethânia. Foi sugestão de Nara ter Bethânia a substituindo no espetáculo Opinião (que estreou em 1964). Ela lançou Nelson Rufino no disco de 1977, deu força para a carreira do Fagner, que produziu seu disco, Romance Popular. Tinha o faro aguçado."
Há uma grande frustração de Cortez com relação a um outro projeto envolvendo a obra de Nara Leão. Em 2012, ele conseguiu aprovar a captação de verba para colocar de pé um projeto via Lei Rouanet. Seu tributo teria cantoras de vitrine grande, como Ivete Sangalo, cantando obras de Nara ao lado de Badi Assad, Luisa Possi e Bárbara Eugênia. Maria Bethânia iria participar com narração. Seriam dois shows no Auditório Ibirapuera, que seriam gravados para o lançamento de um DVD. Na teoria, tudo perfeito. Para o mercado, não.
"Aprovei a captação, mas não consegui captar nenhum centavo. Nada, nada, nada", conta. "Isso por diferentes justificativas. Falavam em crise, as empresas queriam algo mais atual, mais jovem... Foi uma pena." Depois de dar espaço a Nara, o Uirapuru reserva a data do dia 26 para uma homenagem ao mestre Pixinguinha, com o grupo de choro de Luizinho Sete Cordas.
Humor
Sobre fazer humor em um país de ambiente tão mal-humorado, de tantas patrulhas, Cortez diz: "O Brasil sempre foi um país de patrulhamento ideológico. É um erro pensar que isso está acontecendo agora. A gente tem um imperativo aqui, em relação ao humor, que é ‘a família brasileira’. Isso é uma instituição, uma entidade, você tem que respeitar. Se você esbarrar nos dogmas da família brasileira, está ferrado. Isso já acontecia nos anos 1970, 80, mas a internet nos dá a falsa sensação de que estamos mais moralistas".
Se há temas proibidos? Talvez não, mas campos minados, sim. "Eu nunca faço piada sobre três temas: futebol, religião e política. São para mim os temas-problema. Eu me poupo assim de muita dor de cabeça. Não é ser coxinha acomodado, é apenas o princípio do meu trabalho."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.