A creche em que o filho mais velho, Gil, de três anos, está matriculado, ainda não retomou o atendimento de todos os alunos. O caçula, Kim, de cinco meses, ainda não conseguiu vaga. Para não perder o emprego e ter com quem deixar as crianças, Carmo teve de contratar uma babá.
Ainda que o governo tenha liberado as escolas a ter aulas presenciais sem limite de atendimento de estudantes, as unidades públicas ainda estão fazendo o revezamento de turmas para respeitar o distanciamento de um metro dentro dos espaços escolares.
Para Carmo, nem mesmo as aulas presenciais em rodízio voltaram a acontecer. Gil está matriculado no CEI (Centro de Educação Infantil) Suzana Campos Tauil, na Vila Clementino, zona sul da capital. Na unidade, até agora, só 60% das crianças puderam retornar.
A Prefeitura de São Paulo definiu que as creches voltam a atender todos os alunos a partir de 8 de setembro. Até agora, essas unidades estavam priorizando a volta de crianças com mais idade, com irmãos mais velhos e cujas mães trabalhem fora.
"A escola explicou que o meu filho não era um dos mais velhos da turma, por isso, não poderia voltar ainda que eu tenha voltado a trabalhar presencialmente. Por ser três ou quatro meses mais novo que os colegas, ele teve de ficar em casa", conta a mãe.
Questionada, a Secretaria Municipal de Educação não explicou qual a justificativa pedagógica para priorizar os alunos mais velhos de cada turma.
"Outro dia fomos buscar o material impresso de atividades remotas para ele fazer em casa e eu optei por ir em um horário em que ele não encontrasse outras crianças. Se eu não consigo entender por que meu filho não tem prioridade para voltar, como eu explicaria para ele que os coleguinhas podem ir para a escola?"
Sem opção de continuar trabalhando em casa, Carmo pediu ajuda a familiares para poder pagar a babá –apesar disso, o gasto ainda consome 70% do seu salário. "Eu e meu parceiro não temos a opção de continuar em home office e nem a opção de deixar as crianças na escola, a saída foi comprometer ainda mais nossa renda."
A funcionária pública Talita Capella, 38, também teve de reajustar os gastos domésticos para ter quem cuidasse do filho enquanto trabalha. Seu filho, Samuel, de dez meses, também está matriculado no CEI Suzana Campos Tauil e ainda não pôde frequentar a creche.
A sala da turma dele precisa de reforma por ter pouca ventilação. Enquanto a obra não acontece, a escola disse que as crianças não podem retornar.
"Eu e meu marido precisamos trabalhar e não tínhamos com quem deixá-lo. A opção foi matriculá-lo em uma creche particular, que está com aulas presenciais todos os dias há meses."
Capella conta que nunca esteve nos planos do casal pagar uma escola particular. "Ele está matriculado em uma boa creche pública, mas ela não pode atendê-lo. O que me revolta é não terem resolvido os problemas de infraestrutura depois de um ano e meio de pandemia", completa.
Em nota, a secretaria disse que "está com projeto para adequação da altura das janelas" na sala do CEI, mas informou que não procede a falta de uso do espaço. A pasta não informou por que a reforma ainda não foi feita, se há prazo para iniciá-la e concluí-la e nem por qual motivo as crianças daquela turma não puderam voltar para as aulas presenciais.
Para a economista Cecilia Machado, professora da FGV e colunista da Folha, o retorno presencial dos setores produtivos em descompasso com a retomada das atividades presenciais nas escolas, especialmente na rede pública, escancara e amplia ainda mais as desigualdades de gênero.
A falta de um lugar para deixar os filhos significa, principalmente para as mães, a redução de renda e de oportunidades de trabalho. "Já entramos na pandemia com uma enorme desigualdade de gênero e, nesses últimos meses, demos vários passos para trás. As mulheres, já as mais afetadas com o coronavírus, agora têm menos chance de recuperação no mercado de trabalho pela ausência da escola."
Para ela, o poder público precisa enxergar que a volta das aulas presenciais também influencia a recuperação econômica. "Para retomar nossa produtividade, os níveis de emprego, precisamos dar condições para todos. Pensando nas condições necessárias para as mulheres, para as mães."
Perder oportunidades de trabalho se tornou uma rotina na pandemia para a diarista Maria Cremilda Marques, 47. No ano passado, com o isolamento, ela deixou de ser chamada para fazer faxina em várias casas.
Agora que as atividades foram retomadas, ela continua perdendo opções de trabalho por não ter onde deixar os filhos. Ela é mãe de Gabriel e Lucas, de 13 anos. Um deles tem autismo, e o outro, síndrome de Down.
Eles estudam na Emef (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Duque de Caxias, na Liberdade, região central da cidade. A unidade segue com o rodízio de turmas, e os meninos só podem ter aulas presenciais de segunda a quarta.
"Eu deixei de aceitar em alguns dias para ficar com eles em casa, porque nem sempre as patroas gostam que eu leve as crianças. Então, de quinta e sexta, ou deixo de trabalhar ou peço para que eles possam me acompanhar no serviço", conta.
As diárias que Marques faz são a única fonte de renda da casa. Dispensá-las pesa no orçamento familiar. Além de contas de luz e água atrasadas, ela também deixou de comprar alguns alimentos para os filhos.
"Queria muito que eles pudessem ir todo dia para a escola, assim eu poderia trabalhar mais sossegada e saberia que eles estão num lugar adequado e aprendendo."
Os dias em que os meninos vão para a escola também a ajudam a economizar com a alimentação, já que lá eles recebem a merenda escolar. "Eles adoram quando têm aula, porque recebem café da manhã e almoço. A refeição é mais completa do que a de casa."
Érica Uchoa, 29, também tem tido que rejeitar opções de trabalho por não ter com quem deixar seus três filhos. Os meninos de 12, 7 e 3 anos estudam em escolas diferentes no Jardim da Conquista, região de Perus (zona norte), e cada uma segue um formato de rodízio.
O mais velho estuda na escola estadual Breno Rossi, que está revezando semanalmente as turmas. O do meio, matriculado na Emef Aclamado, só tem aula três vezes por semana. E o caçula, na Emei Jardim da Conquista, ainda não pôde voltar para as aulas presenciais.
"Há quase dois anos eu não sei o que é ter os três na escola para que eu possa trabalhar. Na creche, me disseram que meu filho não tinha prioridade para voltar porque eu não tenho carteira assinada para comprovar que trabalho fora."
Uchoa é manicure, mas começou a cozinhar para fora para compensar a perda de clientes que teve por não ter com quem deixar os filhos. "As clientes me chamam e, se eu não consigo alguém pra olhar os meninos, eu tenho que negar o trabalho. Comecei a fazer batata para vender porque já não tinha mais renda."
A Prefeitura de São Paulo não explicou por que está exigindo a carteira de trabalho dos pais como critério para o retorno das crianças às creches.
Em nota, a administração municipal disse que vai retomar o atendimento de todas as crianças de zero a três anos das creches em 8 de setembro. Nas demais séries, as escolas ainda podem adotar o rodízio. Não há previsão para o fim do revezamento.
Nas escolas da rede estadual, também não há previsão de fim do rodízio de turmas. Segundo Henrique Pimentel, chefe de gabinete da Secretaria Estadual de Educação, o desejo é de que as unidades possam voltar a receber 100% dos alunos, mas diz que nem todas conseguem respeitar o limite de 1 metro de distanciamento com a volta de todos.
"A gente observa e tem preocupação com essa questão das mães e também das alunas. Percebemos, nesses primeiros meses de retorno, uma volta presencial maior entre os meninos. Porque os cuidados domésticos ficam mais com as meninas e elas acabam não voltando para a escola", diz.
Ele não explicou quais medidas estão sendo adotadas para evitar um prejuízo maior às estudantes mulheres.
Pimentel afirma que uma comissão médica avalia as condições para ampliar o atendimento dos alunos na rede estadual nos próximos meses.