Com a impossibilidade de frequentar bibliotecas, estudantes, concurseiros e leitores ficaram expostos à infinidade de formas de procrastinação dentro de casa. Muitos encontraram uma saída nas mesmas telas em que se distraiam, com transmissões no Youtube e Twitch nas quais um produtor de conteúdo senta, lê ou escreve em silêncio por horas em frente à câmera.
O título dos vídeos é autoexplicativo: "estude comigo", ou "estude comigo ao vivo", ou ainda "estude comigo em tempo real".
O objetivo é oferecer um período de foco guiado para os espectadores, com pausas e breves interações. É possível encontrá-los com diferentes acessórios, seja com sons de chuva, ASMR de digitação no teclado ou músicas lo-fi, em transmissões que
podem se estender por até 12 horas.
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Alguns canais se baseiam principalmente no método Pomodoro, criado pelo italiano Francesco Cirillo, que propõe sessões de foco por 25 minutos intercaladas por pausas de 5 minutos.
No Brasil, a tendência ganhou destaque com o isolamento social devido à pandemia. Mas, além do incentivo aos estudos, os consumidores dessas transmissões também encontraram um momento de socialização e criação de laços afetivos com outras pessoas.
No caso de Laura Amorim, 28, também conhecida como Lulu Concurseira, a ideia é estudar por 1 hora e ter uma pausa de 10 minutos para conversar com seus inscritos.
Depois de passar em três concursos, a engenheira viu que seu método de estudo surtia efeitos e decidiu que não assumiria o posto como servidora pública, mas sim como orientadora de concurseiros nas redes sociais.
Quando ela começou a trazer o novo formato de vídeo para seu canal, as extensas horas de sua atividade em silêncio causaram estranheza. "Nas primeiras transmissões, caía muita gente de paraquedas, às vezes criticavam as outras pessoas que estavam assistindo, achando que elas estavam ali no chat paradas me assistindo. Nada a ver. A ideia é justamente estudar junto."
Com mais de 100 transmissões em seu canal, os inscritos pediam que ela fizesse lives todos os dias. Diante da demanda, ela resolveu criar um servidor no aplicativo Discord, gratuito e aberto, para que as pessoas possam compartilhar salas de estudo em vídeo ou apenas com voz ou texto.
O Biblioteca da Lulu já tem mais de 17 mil membros e a cada hora são cerca de 500 pessoas online participando das salas de estudo. "As pessoas entram, estudam e não ficam mais com essa sensação de que elas estão perdendo a vida. Elas veem, na verdade, que está todo mundo ali lutando para um sonho em comum."
Para a engenheira florestal Camila Severiano, 32, as transmissões ajudaram a organizar seu tempo de estudo para uma vaga de perito criminal na Polícia Federal. "Antes eu estudava o dia inteiro e dormia só quatro horas por noite. No dia seguinte, eu acordava acabada e não queria nem ver os cadernos", diz.
Depois que começou a acompanhar a youtuber, Severiano conseguiu cumprir a meta diária de seis horas sem procrastinação.
"E quando a Laura faz transmissões de tarde, eu consigo fazer até oito, nove horas sem cansar."
A rede de apoio criada entre os concurseiros foi muito importante para a advogada Cristiane Akemi Sato, 34, que se mudou de
Curitiba para Apucarana, no interior do Paraná, e não conhecia ninguém próximo que estivesse prestando concurso.
Agora, ela nem sente falta das salas presenciais depois de encontrar um grupo no Discord que estuda as mesmas áreas e compartilha das mesmas questões.
"Mesmo quando não estamos muito motivados, a gente desabafa, e lá ninguém te julga. Todo mundo entende e se incentiva", afirma. "Parece estranho falar de presença virtual, mas eu não me sinto mais sozinha."
Sato reforça que, com o conforto de estar em casa, não precisa se deslocar, nem gastar com o aluguel de espaços de leitura compartilhados.
Para Carlos Eduardo Miranda, coordenador do Laboratório de Estudos Audiovisuais da Unicamp, a aprendizagem é efetiva quando há engajamento. Na percepção dele, os vídeos de "estude comigo" têm como principal característica formar um senso de pertencimento "que a comunidade pode oferecer contra o risco da solidão".
O professor, que estuda comunicabilidade audiovisual em processos educativos, aponta que a exibição do conteúdo sem edições é um dos fatores que atrai o público. Além disso, os streamers propõem um método e o colocam em prática.
"Eles não emitem um discurso prescritivo, como o outro deve fazer, mas são a prescrição. Isso é muito importante numa sociedade em que o que é dito e o que é feito está bastante distante."
O uso das ferramentas digitais para a manutenção de foco acaba sendo um fenômeno quase subversivo, na opinião da pesquisadora de mídias sociais Ludmila Lupinacci. "Plataformas de mídias sociais são tradicionalmente criticadas por desvirtuar nossa atenção e nos fazer perder tempo. A apropriação dessa ferramenta para concentração é o que eu acho mais incrível."
O fenômeno das lives de foco compartilhado se estende também para os canais que abordam tópicos literários, como é o caso do Livros e Fuxicos, administrado pelo casal Paola Aleksandra, 30, e Manoel Caldeiras, 30. Os dois começaram a fazer lives no Twitch, em março de 2020 para se aproximarem de seus seguidores.
Mais do que fazer os chamados sprints de leitura, com duração de 30 minutos, o casal se empenha em interagir com quem comenta pelo chat e em falar amenidades. "Às vezes o pessoal da live fala que é a rádio fuxico. De manhã eu faço até previsão do tempo, falo das principais notícias, a mensagem do dia...", comenta Caldeiras, que realiza leituras coletivas toda terça e quinta, às 7h da manhã, e tem um grupo fiel de espectadores.
O casal Paola Aleksandra e Manoel Caldeiras fazem lives de sprint de leitura no Twitch; eles ficam 30 minutos lendo e dão uma pausa de 10 minutos para interagir com fãs Marlene Bergamo/Folhapress ** "Você mostra que a leitura, por muito tempo vista como uma obrigação, pode ser leve. Quando a pessoa entra na descontração, numa leitura de trinta minutos e depois fica dez, quinze minutos papeando, ela vê esse outro lado", diz Aleksandra.
Apesar de possuir um dos maiores canais literários no YouTube brasileiro, com 926 mil inscritos, Bel Rodrigues, 27, também optou por transmitir seus sprints de leitura diariamente no Twitch. As lives variam entre três e quatro horas e costumam se alongar de acordo com o engajamento do público no chat.
"Muita gente gosta de companhia enquanto faz suas tarefas diárias. E eu fui uma adolescente que cresceu desejando essa companhia também, por isso resolvi começar os sprints", conta Rodrigues.
Já a professora de literatura Bruna Martiolli, 24, criou seu canal para trocar experiências com outros docentes, mas durante o isolamento na cidade de Braga, em Portugal -onde faz mestrado-, viu a oportunidade de partir para as lives de estudo e de sprint de leitura. Com as transmissões, ela recebe até ajuda para melhorar trechos da sua dissertação, além da troca de textos de apoio.
"É bom para o crescimento, para conhecer pessoas interessadas. Mas tem um agravante: elas parecem depender de você para estudar. Isso complica, porque minha rotina não é igual a sua."
Essa ressalva também é levantada por Lupinacci. A longo prazo, a associação entre o estudo e uma determinada plataforma "pode acabar prejudicando a pessoa em determinado momento da vida".
A doutoranda acha necessário que as pessoas tenham consciência dos interesses comerciais de plataformas como YouTube, que pertence ao Google, e Twitch, da Amazon. "Acho que é muito difícil colocar tanto tempo do seu dia numa plataforma que pode não continuar igual para sempre."
De qualquer forma, a relevância dessas transmissões está em seu apelo à rotina, diz Lupinacci, o que pode continuar com um grande público mesmo no pós-pandemia.
Independente da continuidade do fenômeno, Miranda, da Unicamp, conclui que o interesse por companhia e estímulos visuais em tarefas solitárias tem muito a dizer. "Vemos a importância do outro na aprendizagem e na formação de cada um de nós".