Sete em cada dez concursos públicos para universidades federais não reservam vagas pela lei de ações afirmativas, segundo levantamento. As instituições ofertam apenas um ou dois cargos em 74,6% dos editais, o que impossibilita a aplicação da reserva de 20% prevista na lei de cotas.
Universidades dividem o número de posições por departamento, localidade do campus, área do conhecimento, entre outros. Isso leva a um alto número de editais com menos de três vagas, mínimo necessário para adotar as ações afirmativas.
Os resultados são de um relatório de pesquisadores da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e do Insper, divulgado nesta segunda (18) em parceria com o Movimento Negro Unificado.
Eles analisaram 3.135 editais de concursos públicos em 56 universidades federais. Os documentos foram publicados entre junho de 2014, quando a lei entrou em vigor, e dezembro de 2022.
Os pesquisadores também avaliaram 6.861 editais de processos seletivos simplificados, com vagas para professores temporários. Nesses, 76% ofereciam número de vagas insuficiente para implementar a lei.
Ao somar concursos e processos simplificados, eles identificaram 46.309 posições abertas durante esse período. Dessas, 9.996 deixaram de ser reservadas para pessoas pretas ou pardas pela lei de cotas, de acordo com o levantamento.
"A lei de cotas não teve alteração ao longo do tempo, mas vimos uma diversidade de interpretações da lei. Isso nos desafiou a pensar mecanismos de burla", afirma Ana Luisa Oliveira, professora de engenharia agronômica da Univasf e uma das coordenadoras do estudo. Ela foi a primeira docente negra a ser nomeada na universidade por ações afirmativas.
O ministro Luís Roberto Barroso, hoje presidente do STF, disse em seu voto a favor da constitucionalidade da lei de cotas que ela poderia ser "fraudada pela administração pública se implementada de modo a restringir seu alcance".
A partir disso, os pesquisadores detectaram seis do que consideram mecanismos de burla para o sistema de cotas. Isso inclui, por exemplo, o fracionamento de cargos por área do conhecimento e por publicação de vaga, quando uma sequência de editais que ofertam apenas um ou dois cargos são abertos em um único mês.
Em 23 universidades, há editais de concursos que não mencionam a obrigatoriedade das ações afirmativas, algo previsto na legislação.
"Na nossa compreensão, todos [os mecanismos] têm a mesma gravidade, porque negaram direitos da população negra", diz a professora Ana Luisa.
O relatório partiu da estatística de que apenas 0,53% das nomeações de professores em universidades federais são de pessoas negras que ingressaram por vagas reservadas, segundo levantamento publicado em 2021, feito pela Escola Nacional de Administração Pública, pela Universidade de Brasília e pelo então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Luiz Augusto Campos, professor de ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz que a divisão de vagas por departamento e localidade, por exemplo, é padrão nas universidades desde antes das ações afirmativas. Portanto, não teriam sido adotadas com o intuito de burlar a lei.
Segundo Campos, pode haver intencionalidade de não ter professores ingressando por cotas, mas o principal problema é que há uma fraqueza na legislação tornando-a incompatível com o modelo usado nas instituições de ensino superior.
"A lei foi pensada para grandes concursos e ignorou os certames em universidades federais, que trabalham com sistemas fracionados", afirma.
Outro entrave para o ingresso de professores por ações afirmativas é o estigma de que a entrada de cotistas afetaria a qualidade da produção acadêmica, de acordo com Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper.
Pessoas de grupos sub-representados nas universidades, como pessoas negras ou mais pobres, enfrentam mais dificuldades em seguir na pós-graduação.
França afirma que ter dedicação integral a um mestrado e doutorado, por exemplo, pode ser mais difícil para esses grupos, que não podem abdicar de renda de trabalho. Por isso, saem em desvantagem em concursos públicos.
"Há uma crença de que selecionar por cotas vai levar a profissionais piores e que vai atrapalhar o departamento", afirma. "Mas são pessoas muito esforçadas, que, às vezes, não conseguem chegar a determinados pontos porque são colocadas muitas barreiras para elas."
A Lei de Cotas 12.990 de 2014 tem vigência de uma década e vence em junho deste ano. Um projeto de lei tramita hoje no Senado para dar continuidade à política, propondo um aumento da reserva de vagas, de 20% para 30%, em concursos públicos e em processos seletivos simplificados que ofereçam duas ou mais posições.
Em nota, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos diz que a organização fracionada dos concursos das universidades dificulta a aplicação das ações afirmativas.
A pasta afirma que publicou no ano passado uma instrução normativa que trouxe a possibilidade de órgãos federais adotarem estratégias alternativas, como agrupamento de vagas, para melhorar os resultados das cotas.
CONHEÇA MECANISMOS QUE AFETARIAM RESERVA DE VAGAS
- Por área: vaga é dividida em categorias menores, como área do conhecimento, tema de atuação ou especialidade
- Não publicidade da norma: obrigatoriedade da aplicação da lei de cotas não é citada no edital
- Fracionamento de elegíveis: direito a ações afirmativas é restrito a apenas parte das vagas, escolhidas por critérios como sorteio, e não à totalidade
- Por localidade: cargos são distribuídos de acordo com o local onde o servidor vai atuar, o que diminui total de vagas
- Descentralização: concursos tocados por unidades administrativas menores dentro da universidade, como chefias de departamento
- Por editais: universidade publica uma série de editais que oferecem apenas uma ou duas vagas ao longo de um único mês