As camadas de sedimentos numa gruta do sudeste da França podem ser comparadas a um sanduíche arqueológico. Em cima e embaixo, como se fossem as fatias do pão, estão fósseis e artefatos associados aos neandertais, primos extintos dos seres humanos modernos.
O mais surpreendente, porém, é o "recheio": instrumentos e fósseis atribuídos ao Homo sapiens com mais de 50 mil anos de idade.
Para os autores de um novo estudo sobre o abrigo rochoso, tudo indica que pessoas de anatomia moderna e neandertais ocuparam de forma alternada o mesmíssimo local durante a Era do Gelo –e isso mais de dez milênios antes da extinção dos neandertais.
De quebra, os achados na gruta são, por ora, as mais antigas evidências da presença de membros da nossa espécie no território europeu.
"É uma descoberta tão chocante quanto a da gruta de Chauvet em 1994, a qual, na época, revelou a mais antiga caverna com pinturas do mundo", diz Ludovic Slimak, pesquisador da Universidade de Toulouse-Jean Jaurès e um dos coordenadores da pesquisa, que acaba de sair no periódico especializado Science Advances.
Slimak e seus colegas combinaram a análise de fósseis e artefatos de pedra com a datação precisa das diversas camadas do abrigo de Mandrin, localizado no curso médio do rio Ródano, um dos mais importantes da região desde a pré-história.
Segundo ele, um dos fatores que facilitaram a determinação das idades de camada foi o vento conhecido como mistral, típico daquele pedaço do Mediterrâneo. Ao passar pelo vale do Ródano, o mistral foi depositando camadas de areia ao longo de milênios, as quais selaram os instrumentos e os ossos de neandertais e humanos em estratos bem definidos.
"É uma espécie de Pompeia, só que sem aspectos catastróficos", diz o cientista francês, comparando a gruta onde trabalha há 30 anos à cidade romana "congelada" pelo vulcão Vesúvio.
Os fósseis encontrados na gruta de Mandrin são apenas dentes, espalhados por diversas camadas. Por sorte, as diferenças de formato e esmalte entre a dentição dos neandertais e a dos H. sapiens são suficientes para distinguir uma espécie humana da outra. Embora a maioria dos dentes seja de neandertais, um deles corresponde à de uma criança anatomicamente moderna com idade entre dois e seis anos.
A principal pista no caso da nossa espécie, no entanto, são os artefatos de pedra. São pontas de pedra pequenas (algumas com comprimento inferior a 10 milímetros), produzidas em grande quantidade e de maneira extremamente padronizada, usando técnicas muito semelhantes às empregadas do outro lado do Mediterrâneo, no Líbano.
O estilo dos instrumentos de pedra neandertais é completamente diferente, com o uso de pontas bem maiores. As idades estimadas para a presença dos humanos anatomicamente modernos na gruta ficam entre 56,8 mil anos e 51,7 mil anos atrás. Antes da publicação do trabalho, os registros mais antigos da nossa espécie na Europa datavam de cerca de 45 mil anos antes do presente.
Para os pesquisadores, a semelhança dos artefatos franceses com os do Mediterrâneo Oriental é um indício de que os primeiros H. sapiens europeus tinham dominado alguma forma de navegação que lhes permitia viajar pelo litoral da região.
Eles associam essa capacidade com outras expansões bem conhecidas da humanidade depois que ela deixou seu berço africano, como o desembarque na Austrália há mais de 60 mil anos.
Outro ponto crucial tem a ver com a cronologia das reocupações da gruta e com as matérias-primas utilizadas por ambas as espécies.
O "recheio" com a ocupação por H. sapiens apareceu no abrigo rochoso cerca de um ano após a saída dos neandertais, e os instrumentos usados pelos dois tipos de humanos vêm das mesmas pedreiras, num raio de 100 km.
"Aqui, podemos suspeitar que houve uma transmissão direta de conhecimento sobre o terreno dos neandertais para os H. sapiens. Então, os humanos modernos teriam tido contato direto com as populações locais. Podem ter contado com a ajuda de batedores neandertais, por exemplo", especula Slimak.
O fato de a gruta ter sido reocupada por neandertais décadas mais tarde, bem como os vários milhares de anos antes que eles desaparecessem de vez, também sugere um processo muito mais longo de contato entre as populações –bem diferente de uma suposta guerra de conquista por parte dos humanos anatomicamente modernos. É o que indicam também os dados de DNA, que mostram vários casos de cruzamento entre as espécies.