"A ideia que eu vejo pela qual nos dias de hoje devemos nos lembrar de Tiradentes é a de que ele defendia os ideais nos quais acreditava e aquilo do qual se sentia parte”. Assim o professor de História e Sociologia de Londrina Anderson Manganaro sintetiza o legado da figura em homenagem à qual foi criado o feriado de 21 de abril. Joaquim José da Silva Xavier, popularmente apelidado de Tiradentes, foi um alferes, posição de patente baixa do exército, que se tornou célebre mais de cem anos após sua morte por ter defendido ideais republicanos.
Nascido em Minas Gerais em 1746, o apelido de Tiradentes se explica por conta do "bico”, trabalho informal, como uma espécie de dentista popular, que Xavier exercia para complementar a renda. "O alferes era uma espécie de cargo de entrada na carreira militar”, explica Manganaro. "O problema é que era necessário pagar para subir na hierarquia e, além disso, já havia um custo anual que se pagava pela patente de alferes. Então, ele acabava fazendo ‘bicos’”, conta. "Se ele fosse realmente um dentista, estudado, ele seria chamado de boticário, que era o nome que se dava aos dentistas da época”, informa o professor.
O "bico” como "dentista” informal pode ter facilitado o contato de Tiradentes com os ideais iluministas, que efervesciam na segunda metade do século XVIII. "Ele exercia esse ‘bico’ provavelmente nas tavernas, nos bares, que frequentava, atendendo pessoas que não tinham dinheiro para ir a um boticário”, pontua Manganaro. "Ele acaba conhecendo poetas nessas tavernas, os filhos dos fazendeiros ali da região de Minas Gerais, e se interessa pelo assunto deles. Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, outros membros do que vai se tornar a Conjuração Mineira”, descreve. "Ela só se transforma em ‘Inconfidência’ porque eles foram delatados, literalmente numa delação premiada, por um dos membros, Joaquim Silvério dos Reis, e acabam todos presos”, conta o professor.
Mas, afinal, de que falavam os poetas nas tavernas? - Era costume à época que os filhos de fazendeiros do Brasil fossem estudar nas mais célebres universidades de Portugal, o que os possibilitava de entrar em contato com as ideias que se desenvolviam na Europa. "O final do século XVIII é o momento em que está explodindo a Revolução Francesa. Há então um combate das novas ideias contra o Absolutismo, além da Revolução Industrial, que já começara na Inglaterra”, contextualiza Manganaro. "Esses estudantes retornavam cheios de ideias dos conceitos iluministas, de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. E o conceito iluminista mais defendido era a República”, explica. "Seria o fim da Monarquia, porque a República seria todo o ideário do povo no poder”, lembra o professor, sobre um contexto em que o Brasil era colônia da coroa portuguesa, que recebia altos impostos advindos do que se explorava na colônia.
"Nesse momento, Portugal, que era regido pelos Bragança, tinha regras muito vinculadas aos costumes religiosos. Com isso, Portugal ‘escondia o Brasil do mundo e o mundo do Brasil’”, ilustra. "O que eu quero dizer com isso é que Portugal evitava, a todo custo, que livros novos chegassem aqui, jornais, periódicos, porque isso poderia alimentar ideias novas no Brasil, e, também não deixava informações do Brasil irem para a Europa, para que os olhos europeus não se fixassem sobre o Brasil”, conta. "E é nesse contexto que explode a Inconfidência Mineira, com esses ideais da Revolução Francesa chegando aqui por meio de livros contrabandeados, que vinham no meio da bagagem desses alunos que estudavam em Portugal”, descreve Manganaro.
"A ideia de Brasil Nação, porém, ainda não existia no século XVIII”, lembra o professor. "Aí está o ponto que, muitas vezes, não se comenta: o objetivo deles, da Inconfidência, não era libertar o Brasil. Era libertar Minas”, pontua. "Do mesmo modo que a Conjuração Baiana não visava libertar o Brasil, mas a Bahia. Minas seria independente, a Bahia seria independente”, ressalta. "O pacto social que cria a ideia de nação é com base justamente num vínculo de costumes e valores compartilhados, o que só seria construído no Brasil muito após a Inconfidência”, explica.
Ocorre, então, a Inconfidência Mineira, como tentativa de libertar Minas Gerais do jugo da coroa portuguesa. Os participantes são traídos e presos, passando por anos de investigação e interrogatórios. "Tiradentes era o mais pobre do grupo, e ‘curiosamente’ acabou sendo considerado o mais radical, ele foi o que mais adentrou e absorveu essas ideias”, conta Manganaro. Tiradentes acaba sendo tido como "bode expiatório” da Inconfidência e, em 21 de abril de 1792, é enforcado e tem seu corpo despedaçado.
A construção de um herói nacional e o uso do imagético cristão - "A forma como Tiradentes foi executado não era uma excepcionalidade na época”, conta Manganaro. "Na revolta de Vila Rica, por exemplo, que foi no começo do século XVIII, aconteceu a mesma coisa com Filipe dos Santos, que foi enforcado e esquartejado. Isso era para mostrar o que acontece com quem vai contra a coroa”, exemplifica. "Tiradentes só foi relembrado no final da monarquia, quando começa o regime e a influência dos republicanos, porque precisava-se de heróis nacionais, e heróis que defendem os mesmos ideias da República”, destaca.
Muitas representações artísticas de Tiradentes foram feitas nesse período de início da República, como forma de consolidar essa imagem de mártir e herói, que morreu em defesa dos ideais republicanos. Uma das mais famosas é "Tiradentes Esquartejado”, do pintor Pedro Américo, criada em 1893, 101 anos após a morte de Tiradentes. "Nesse período já começava a ideia de Brasil, de sentimentos nacionais em comum”, explica o professor. "Especialmente entre os republicanos do Rio de Janeiro, com destaque para a cúpula militar do Colégio em Botafogo, porque eles eram positivistas. O positivismo é a linha de pensamento de Auguste Comte, que valoriza a Ciência como motor do progresso. E isso seria a República, tanto que o lema da nossa bandeira, Ordem e Progresso, é a máxima do Positivismo”, menciona.
"Um dos primeiros atos da República foi justamente instituir o feriado de Tiradentes”, afirma. "E aí houve uma construção, porque Tiradentes era um fruto da época, então até o corte de cabelo era o corte da época”, explica. "Provavelmente, na realidade, o cabelo dele teria sido cortado, porque ele seria decapitado, e o cabelo atrapalha. Na Revolução Francesa, por exemplo, em que os condenados seriam guilhotinados, quem tinha o cabelo comprido, ou amarravam ou cortavam na faca, justamente para não ter perigo de a lâmina da guilhotina não cortar o pescoço”, ressalta. "Só que a imagem que foi feita de Tiradentes se assemelha a Jesus, até mesmo com os doze ‘apóstolos’, que seriam os doze participantes da Inconfidência. Assim nasce o símbolo nacional do Tiradentes como alguém que se sacrificou pela nação, não logo após sua morte, mas mais de cem anos depois, somente após a proclamação da República”, aponta o professor.
Na atualidade, porém, é comum observar uma certa indiferença dos brasileiros com relação ao feriado de Tiradentes. "A importância de Tiradentes atualmente é algo extremamente complexo”, pontua Manganaro. "Nós damos validade, nos sentimos parte, de algo que está vinculado a nós. Quando observamos a história do Brasil, perceba que, tanto quanto o 21 de abril, o brasileiro não se importa muito com o 15 de novembro. Muitos não têm ideia do porquê que 15 de novembro é feriado”, exemplifica o professor, em referência ao feriado da Proclamação da República. "Porque foi algo do qual o povo não participou. A ideia de nação é quando fazemos parte desse processo, nos sentimos vinculados a isso, quando deixa de ser sobre ‘você’, e passa a ser ‘nós’. Então, no caso do Tiradentes, não há esse ‘nós’, assim como na Proclamação da República”, conta.
O aspecto de Tiradentes, porém, ao qual, em todas as épocas, é possível encontrar paralelos e sentimentos de identificação, é no sentido da luta por ideais. "Muitas vezes, nós ou colocamos Tiradentes num contexto no qual ele não estava, que é o contexto nacional, ou criticamos ele por defender só o território dele, sendo que a ideia de Brasil ainda não existia”, destaca o professor. "Percebo que é interessante ligarmos ao Tiradentes hoje à ideia de alguém que defendia aquilo em que acreditava”, conclui.
*Sob supervisão de Larissa Ayumi Sato.