A pandemia da COVID-19 já virou meme, já foi politizada, capitalizada e entrou na onda da polarização ideológica espalhada pelo Brasil e pelo mundo. Com tanta informação, inclusive desencontrada, será um desafio para os historiadores escreverem sobre este período. Maria Renata Duran é professora de História Moderna e Contemporânea no Departamento de História da UEL (Universidade Estadual de Londrina), e é uma historiadora com olhar atento tanto sobre a formação profissional de sua área quanto nos discursos que acompanham os fatos. Ela desenvolve um projeto intitulado "Retórica, ciência e literatura da modernidade à contemporaneidade".
Para a professora, é muito difícil fazer diagnósticos e mais ainda prognósticos porque, embora possamos encontrar paralelos na História, nunca é possível prever o futuro. "As coisas não ocorrem da mesma maneira nem nós as entendemos da mesma maneira a cada vez", explica. Mas o passado pode ensinar: "O passado não é banal, ele traz soluções, acertos e dinâmicas que podem ser úteis", acrescenta.
Por exemplo, houve outras doenças graves e que se espalharam por muitos países. A peste negra, no final da Idade Média (século XIV) é o exemplo mais lembrado. Embora não houvesse censos nem um mapeamento, estima-se que pelo menos ¼ da população da Europa morreu por causa da doença.
Naturalmente, o impacto na sociedade foi brutal, em todas as suas dimensões. Foi naquela época que começaram a surgir mais instituições hospitalares. Shakespeare citou a peste em algumas de suas obras: a trágica falha de comunicação entre Romeu e Julieta aconteceu porque o personagem que deveria evitá-la foi impedido de sair por causa de uma quarentena. Teatros eram fechados frequentemente para evitar que doenças se espalhassem, períodos em que Shakespeare aproveitava para escrever. O próprio poeta nasceu em meio a uma pandemia - ele era o terceiro filho de oito, e os dois mais velhos que ele morreram.
Duran avalia ainda que, através de Shakespeare, podemos vislumbrar uma mudança na política das cidades italianas e nas relações sociais das pessoas lá, que passaram a valorizar mais as relações locais. A peste negra durou muitos anos, mas incidiu de forma intermitente, indo e voltando. Na Inglaterra, só apareceu dois anos depois de assolar a Itália. Na França, ocorreu em ondas.
Direitos
Bem mais adiante, já no século XVII, ainda ecoam os efeitos sobre a população europeia. A extensa morte de pobres encareceu a mão de obra, fortaleceu os trabalhadores que se viram em melhores condições para exigir direitos, e gerou uma crise econômica que resultou em importantes mudanças políticas. Não é por acaso que em 1642 eclodiu a guerra civil inglesa. Ela foi tão importante que chegou a implantar um sistema republicano por algum tempo na Inglaterra.
Em outras instâncias, lembra a professora Maria Renata, também houve mudanças relevantes. Segundo ela, alguns historiadores enfatizaram o desenvolvimento do antropocentrismo e do humanismo no pensamento ocidental. "As ciências e o conhecimento começaram a se voltar mais fortemente para o próprio homem". As pessoas passaram a entender que a vida devia ser celebrada, e as relações sociais valorizadas (adiante se falará do "contrato social"). No Renascimento, descreve a historiadora, a Retórica se valoriza: "As pessoas querem falar. O discurso se desenvolve junto com o conhecimento técnico", observa.
Por outro lado, também houve polarização e radicalização do pensamento, como hoje, afetando as relações sociais. Foi também a época do medo, da Inquisição, das perseguições religiosas, da intolerância.
Gripe espanhola
Já no século XX, a chamada gripe espanhola (que não surgiu na Espanha), foi outra pandemia grave. Como também veio em ondas, a reação tinha que ser coletiva, não pontual. Entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, a doença teria infectado ¼ de toda a população mundial. Na época, relata a professora, o isolamento foi adotado. Ainda assim, fala-se em 50 milhões de atingidos, dada a gravidade da doença.
A gripe começou no final da Primeira Guerra Mundial e pavimentou o caminho para a Segunda, graças à depressão econômica em muitos países que veio em seu rastro. Altas taxas de desemprego, insegurança, hiperinflação e queda na produção fertilizaram o solo para ideias radicais como o fascismo e o nazismo.
História recente
Desde os anos 80 do século passado, países asiáticos têm convivido com epidemias de doenças respiratórias. Há anos os telespectadores veem imagens das populações chinesa e japonesa, por exemplo, usando máscaras nas ruas. Tudo isso gerou naquelas sociedades uma "cultura de resposta" às doenças infecto-contagiosas, de modo que elas não resistem às ações do Estado e não respondem com violência ou desespero. Maria Renata destaca, por exemplo, como a Coreia do Sul respondeu bem à atual pandemia. Lá, o auge da doença ocorreu ainda em março, logo após os primeiros casos, e desde então o gráfico só desce. Apesar de mais de 11.500 casos confirmados, as mortes não chegam a 280.
Nos Estados Unidos já foi diferente. Lá, onde os estados são mais fortes, a população sentiu menos segurança com o poder central e mais com as autoridades regionais e locais. Além disso, houve uma forte reação econômica, para variar, no sentido de perguntar: "Mas quem vai pagar esta conta?"
Brasil
Aqui os primeiros registros de grave epidemia datam de meados do século XVIII. O sarampo teria matado ¼ da população indígena da época. Mas não há números confiáveis. No século XIX, a tuberculose foi o grande mal, matando inclusive os poetas Castro Alves e Álvares de Azevedo. Vale lembrar que esta doença não foi erradicada e é a que mais mata no mundo - perto de três milhões por ano em todo o mundo. No Brasil a estimativa é de mais de 100 mil casos novos todos os anos.
Quanto ao cenário recente, a professora Maria Renata afirma que "nada hoje foi criado pelo vírus. Tudo foi acentuado, agudizado" - referindo-se ao sentimento de medo, desconfiança, hostilidade, entre outros. Ela não vê nenhuma grande mudança mundial até o momento. Mas destaca algumas pontuais. Na Romênia, por exemplo, a pandemia fez uma grande quantidade de romenos retornarem de outros países para lá. Com isso, começou a faltar mão de obra em algumas atividades, o que fez algumas nações mudarem a legislação para favorecer e estimular a fixação dos romenos.
Na América Latina, observam-se muitos problemas, e várias respostas. O continente, que tem uma história de ditaduras no século XX e redemocratização só ao final, enfrenta um problema geral: a descontinuidade das políticas públicas. Não é difícil entender o problema quando se pensa, por exemplo, que o governo brasileiro, em plena pandemia, trocou o titular do Ministério da Saúde três vezes, e tem um interino na pasta há quase um mês, justamente quando o país alcança o epicentro da doença no planeta.
A crise de saúde, segundo a professora, trouxe outras. Uma delas é a econômica, mas que foi acentuada, porque já existia. "Afinal, qual será o verdadeiro problema da economia brasileira? A pandemia, a quarentena, ou o sistema?", indaga a historiadora. Outra crise é diplomática: com seu discurso, o Brasil se afasta de outros países que poderiam contribuir. De fato, nem parece haver um plano diplomático brasileiro para enfrentar a doença. E há ainda a crise política, que também se acentuou, pois já vinha problemática, sem visão nem projeto. E para quem pensa que as Ciências Humanas não podem ajudar, a historiadora só dá um rápido exemplo: as fake news. "Precisamos da Comunicação para estudá-las, compreendê-las e evitá-las", diz.
Como se vê, não será uma tarefa simples para os historiadores abordarem este período. Como salienta a professora Maria Renata, a História é uma área de conhecimento viva, sempre em transformação. "Quando as pessoas se perguntam como o presente será contato no futuro, elas se espantam com a quantidade de informações a que têm acesso atualmente, esquecendo-se que, por exemplo, em meados de 1500 um novo continente foi descoberto, a imprensa foi desenvolvida, novas religiões surgiram e a centelha do capitalismo foi acesa", conta.