Quando a imagem falsa do papa Francisco vestido com um sobretudo rechonchudo branco viralizou em março de 2023, fazia três anos que o Vaticano havia se apresentado como mediador internacional do debate sobre inteligência artificial.
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Conhecido como Apelo de Roma pela Ética na IA, o documento lançado em 2020 por um dos órgãos da Cúria Romana tenta desde então atrair empresas, governos e outras religiões para o compromisso de uma responsabilidade coletiva no desenvolvimento e uso dessa tecnologia.
A iniciativa, que conta com apoio de companhias como IBM, Microsoft e Cisco, terá um marco histórico em junho, durante a próxima reunião de cúpula do G7. O papa Francisco foi convidado a participar do evento, justamente no grupo dedicado à inteligência artificial.
Será a primeira vez de um pontífice no encontro que reúne, desde os anos 1970, algumas das maiores economias do mundo.
O convite à Francisco partiu de Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, onde a reunião acontecerá entre os dias 13 e 15 de junho. Ao anunciar a presença do papa e a atenção que a presidência italiana do G7 pretende dar ao tema, a premiê classificou a inteligência artificial como o "maior desafio antropológico desta era", o qual deve ser enfrentado de forma coletiva.
"É fundamental valorizar as melhores reflexões éticas e intelectuais que estão sendo desenvolvidas. Como o percurso lançado pela Santa Sé em 2020, que busca aplicar de forma concreta o conceito de 'algorética', ou seja, dar uma ética aos algoritmos", disse Meloni.
Em linhas gerais, o Apelo de Roma -que difundiu o termo "algorética"- pede que os signatários se comprometam em desenvolver sistemas de IA que tenham benefícios para todos, sem que o único objetivo seja busca por lucros ou a substituição da mão de obra humana.
O documento lista seis tópicos: transparência, inclusão e imparcialidade, para que os sistemas sejam compreensíveis, acessíveis e não criem preconceitos; responsabilidade, para que haja sempre um humano que responda pela operação de máquinas; confiabilidade e respeito à privacidade.
"A Igreja busca diálogo para que o instrumento IA não seja algo somente técnico, mas que saiba dar centralidade a princípios que protejam os mais frágeis", diz à Folha o padre Paolo Benanti, diretor científico da fundação do Vaticano que se dedica ao tema, a Renaissance. O órgão é vinculado à Pontifícia Academia para a Vida, onde nasceu o Apelo de Roma.
Mais que defender uma linha própria de abordagem, a Igreja tem intenção de criar oportunidades para debates e comprometimentos. "O documento não é um tratado legal. É um chamado que pretende lançar um processo ético de mudança", diz Benanti, que é consultor técnico do papa e membro de comissões do governo italiano e da ONU.
Uma das principais preocupações da Igreja, afirma, é que a IA não seja um multiplicador de desigualdades. Segundo o religioso, a participação de Francisco no G7 deverá conter traços de suas intervenções recentes, que chamam atenção para a centralidade do homem em relação à máquina e a justiça social.
Nos últimos anos, o papa abordou o tema em cerca de 20 discursos. Um dos mais importantes é a mensagem para o Dia Mundial da Paz, publicada em dezembro e inteiramente dedicada à IA.
"Os desafios que ela coloca não são apenas de ordem técnica, mas também antropológica, educacional, social e política. A inteligência artificial deveria estar a serviço de um melhor potencial humano e das nossas mais altas aspirações, e não em competição com eles", diz o texto.
"O papa convida governos e instituições ao estabelecimento de regras éticas, à definição de uma regulamentação única. Para que o desenvolvimento não seja só em favor do lucro, mas traga facilidades para os mais necessitados", diz Giovanni Tridente, professor e autor do livro "Anima Digitale - La Chiesa alla Prova dell'Intelligenza Artificiale" (alma digital, a Igreja à prova da IA), lançando em 2022.
Na mensagem para paz, Francisco cita alguns desses benefícios, defendendo que a IA seja regulamentada não só para a prevenção de aplicações inadequadas, mas para o incentivo a soluções criativas para as pessoas. "A IA poderia introduzir inovações importantes na agricultura, na educação e na cultura.
No G7, Tridente acredita que o argentino dará especial ênfase aos impactos no mercado de trabalho e à dignidade dos trabalhadores.
"Proteger o trabalho não significa deixar de aplicar a inteligência artificial porque alguns empregos vão desaparecer, mas fazer com que haja um planejamento de novos postos de trabalho."
Francisco pode ainda fazer uma reflexão sobre a qualidade das relações entre as pessoas, que não devem ser substituídas pelas máquinas.
Da mesma forma com que faz apelos quase diários pela paz, com comentários sobre os conflitos na Ucrânia e em Gaza, e dá especial atenção em seu papado a temas ambientais, Francisco busca se colocar como autoridade moral também em relação à inteligência artificial.
Segundo Tridente, as bases teológicas para esse posicionamento são descritas pelo papa João 23, que com uma encíclica, documento escrito pelo pontífice, em 1961 dizia que a Igreja é "mãe e professora" da humanidade. "Nesse sentido, a Igreja quer acompanhar a humanidade também nesse avanço, para que traga cada vez mais benefícios, ao mesmo tempo em que zela por riscos e perigos", afirma.
Mais especificamente, João Paulo 2º passou a olhar para questões de robótica nos anos 1980, quando já dizia que o homem deveria estar no centro do processo e não como vítima.
Diferentemente de outros tópicos contemporâneos, como a abertura da Igreja às mulheres e à comunidade LGBTQIA+, a inteligência artificial e a forma como Francisco trata do assunto não estão entre os assuntos divisivos entre o clero.
"É uma visão muito equilibrada. De um lado, exclui o entusiasmo excessivo e o fato de se deixar levar totalmente pelas empresas desenvolvedoras. De outro, evita cair no catastrofismo que teme pela substituição da raça humana. A visão apocalíptica existe em parte da sociedade, mas não na Igreja", diz Tridente.