Pouco antes da pandemia, a estudante Ana Flávia, 17, se preparava para assumir uma vaga no setor de atendimento de uma faculdade em Sumaré (SP), onde reside. Contava com um salário mínimo para ajudar nas despesas de casa e no sustento do filho, hoje com um ano e sete meses.
"Fiz cursos, me preparei, participei de entrevista e teste para a vaga. Quando estava tudo certo para começar a trabalhar, veio a pandemia", lamenta a jovem, que é estudante do terceiro ano do ensino médio e vive com dois irmãos mais velhos.
A vaga que Ana Flávia (nome fictício) quase pegou era do programa Jovem Aprendiz, uma política federal para ajudar estudantes em situação de vulnerabilidade a ingressar na força de trabalho, que terminou 2020 com saldo negativo de 87 mil postos fechados.
Ela diz que continua procurando emprego, mas que quase não há vagas. Dados do Ciee (Centro de Integração Empresa Escola) mostram que sumiram também as ofertas de estágio para universitários. O número de contratos fechados caiu quase 30% em 2020.
Ao todo, 2,1 milhões de brasileiros com idades entre 18 e 24 anos perderam o emprego no ano passado, incluindo na conta os trabalhadores que não têm carteira assinada. Em termos proporcionais, a perda de vagas dessa faixa foi o dobro da média de todas as faixas etárias.
E, dados do IBGE indicam, muitos desistiram de procurar emprego, passando direto à inatividade. Esse desengajamento é visto com grande preocupação por pesquisadores do assunto.
"O que acontece com o jovem nessa fase, quando ele está entrando no mercado, cria um teto. É o início da fase da ascensão social", diz Marcelo Neri, da FGV Social. "Isso traz cicatrizes na trajetória", completa Enid Rocha, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). "Eles ficarão algum tempo sem acumular capital humano, sem se qualificar, e, quando voltarem ao mercado, disputarão vagas com a geração que está chegando."
Neri calcula que a taxa de brasileiros entre 20 e 29 anos que não trabalham nem estudam bateu recorde de 35% no segundo trimestre de 2020 e fechou o ano em 31%, patamar do pior momento da crise iniciada em 2014.
Enid Rocha e seu colega Fábio Monteiro Vaz concluíram que a pandemia reduziu a mobilidade desses jovens dentro da força de trabalho. "Agora a porta de saída [da inatividade] ficou mais estreita", diz Rocha.
Comparando pesquisas do segundo trimestre de 2020 com respostas de um ano antes, eles calculam que a probabilidade de saída dessa condição despencou dez pontos percentuais com a pandemia. "Eles estão por um tempo mais longo na inatividade."
Pesquisa encomendada pelo C6 Bank ao Instituto Datafolha mostrou em janeiro que 4 milhões de estudantes abandonaram os estudos em 2020, 24% deles por questões financeiras. No ensino médio, um a cada dez desistiram. No superior, um a cada nove.
"O não retorno à escola após a pandemia, por dificuldade econômica, vai agravar a exclusão e a desigualdade", diz Elvis Cesar Bonassa, da Kairós Desenvolvimento Social. Em geral, jovens com menor escolaridade têm menor rendimento e são mais vulneráveis à crises no mercado.
Na pandemia, o desemprego cresceu mais entre os trabalhadores com ensino médio incompleto, passando de 18,5% para 23,7% entre o fim de 2019 e o fim de 2020. Na faixa com superior completo, a taxa de desemprego passou de 5,6% para 6,9%.
O diretor da Vocação, organização que assiste famílias em situação de vulnerabilidade e encaminha jovens a programas de emprego, Josmael Castanho, defende que o tema deveria ser central na pauta de políticas públicas para depois da pandemia.
"Quando o jovem chega aos 16 anos, a renda é estruturante. Se não ajudarmos na transição da escola ao trabalho, ele vai reproduzir o ciclo da família."
O Ministério da Economia estuda um programa focado na inserção dos chamados "nem-nem" no mercado de trabalho, mas ainda não foram apresentados detalhes. A ideia é compartilhar com o empregador o custo dos salários, de até R$ 600.
Embora tenha potencial de gerar renda no curto prazo, a medida é vista com ressalvas pelos especialistas ouvidos pela reportagem, tanto pela falta de detalhes quanto por ter uma visão "exclusivamente financeira", nas palavras de Bonassa.
"A proposta desqualifica a política pública de aprendizagem porque não é um plano estruturante", concorda Castanho. "O que precisamos é criar uma política que não seja apenas emergencial, porque o problema do jovem de baixa renda não é momentâneo."
Os especialistas sugerem também políticas para incentivar jovens a manter algum ritmo de qualificação neste período, principalmente voltada a novas tecnologias.
"As profissões de entrada estão sendo extintas, substituídas pela tecnologia", diz Castanho, citando o maior uso de inteligência artificial nos call centers e a digitalização em processos administrativos.
"É preciso avaliar medidas de inserção para os jovens que estão neste apagão", diz o economista Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUCRS. "Programas como o Jovem Aprendiz têm uma função social importante, porque geram renda sem tirar alunos da escola."
Neri sugere uma visão multidisciplinar. "Se pensarmos a história de todas as faixas etárias, o jovem é onde estamos perdendo todas as batalhas", diz, enumerando sucessos com a população infantil, como redução da mortalidade e aumento de frequência escolar.
Os jovens, por exemplo, estão entre os que mais sofreram violência no Brasil e sofrem há anos com aumento da taxa de sobremortalidade, principalmente entre homens. No grupo de 20 a 24 anos, um homem de 20 anos tinha 4,6 vezes mais chance de não completar os 25 anos do que uma mulher do mesmo grupo de idade.
Segundo estimativa do IBGE, brasileiros com idades entre 15 e 24 anos representam 16,6% da população. Há dez anos, eram 18,6%.
A redução constante indica que o país caminha para o fim do bônus demográfico, período em que um país tem mais pessoas em idade economicamente ativa do que aqueles em idade não produtiva. "O Brasil pode perder esse grande capital", diz Rocha, do Ipea.
Frequentando o terceiro período da faculdade de psicologia, Nicolas Pires de Oliveira, 19, começou há um mês na área de recursos humanos da calçadista Arezzo, em uma vaga do programa Jovem Aprendiz.
"É complicado se ver em uma situação difícil, incapaz, não só para si mesmo mas para manter a casa. Ninguém deveria ter que passar por isso", diz. Seu salário dobrou a renda mensal do domicílio onde vive com o pai, em Osasco, na região metropolitana de São Paulo.
Ele conta que buscava vaga desde os 16 e viu muitas portas fechadas pelo preconceito. "Ter um emprego para mim foi uma coisa de me sentir autossuficiente não só no mercado de trabalho, mas também como pessoa trans, que já tem esse direito negado a vida toda."
Agora, frequenta a faculdade noturna e trabalha de 10h às 16h. Às quintas, o expediente é substituído por aulas de qualificação a distância. Satisfeito com a possibilidade de uma carreira, Nicolas espera ter uma chance de efetivação quando o contrato de aprendiz terminar, em dez meses.
"Isso me trouxe uma sensação de poder ajudar na minha casa, ajudar meu pai, fazer minhas coisas, investir no meu futuro", diz. "Mas a gente está realmente num momento muito duro, então é difícil manter 100% de esperança."