Se antes da pandemia a chegada de fevereiro era sinônimo de paetê, purpurina e blocos na rua, com o coronavírus o mês perdeu o brilho e virou motivo de tristeza. É essa a palavra que foliões espalhados pelo país usam para explicar como é passar mais um ano sem o Carnaval, evento que foi cancelado ou adiado nos estados em razão da pandemia.
Quem achou que poderia tirar a fantasia do guarda-roupa e aproveitar a folia em 2022 acabou se frustrando quando a variante ômicron obrigou as autoridades a suspenderem mais uma vez a festa.
Na Bahia, a decisão aconteceu em dezembro, quando o governador Rui Costa (PT) cancelou o Carnaval argumentando ser importante ter "responsabilidade com a saúde e a vida das pessoas".
Em janeiro, foi a vez de Rio de Janeiro e São Paulo anunciarem o cancelamento do Carnaval de rua. As duas capitais decidiram, porém, manter o desfile das escolas de samba, adiando a festa para o dia 21 de abril.
Já em fevereiro, o governo de Pernambuco proibiu a realização de festas públicas ou privadas de Carnaval durante o período de 25 de fevereiro a 1° de março.
Para entender como é passar mais um ano sem a folia, Folha ouviu artistas e anônimos, passando por ambulantes e presidentes de blocos de rua de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Olinda. São perfis variados, mas que compartilham dois sentimentos em comum –o amor pelo Carnaval e a frustração de não poder aproveitá-lo mais um ano.
"Chegamos a mais um ano sem essa possibilidade de fazer o Carnaval
acontecer nas ruas, por uma questão de cuidado com o outro que é também
um autocuidado. Precisamos ouvir o que a ciência diz. E ela nos pede
calma. Não é uma calma fácil de ser compreendida e executada, porque o
tempo sim, zás – essa velocidade que queremos das respostas que dançam
nos tempos, mas que precisamos fazer mais silêncio para conseguir
escutar como a música respira em nós." - Carlinhos Brown, cantor e compositor.
"Uma hora dessas estaria todo mundo alegre, na correria para começar o trabalho no Carnaval. No trio elétrico, a gente trabalha com toda a atenção. Mas também curte, é uma alegria só. Sem a festa, infelizmente, muita gente vai ficar sem ganhar o seu. Além de ser uma tradição da cidade, o Carnaval gera muito emprego. Fico triste, mas entendo que é uma questão de segurança." - Luiz Carlos Brito, motorista de trio elétrico.
"O Carnaval é uma festa que se tornou um momento em que o brasileiro se expressa, mostra sua espontaneidade, sua criatividade, nossa cultura. Mas é um momento de pandemia, a gente tem que ter essa responsabilidade. É claro que a gente está sentido, porque é o nosso momento de trabalho, o momento que gente encontra os nossos fãs." - Margareth Menezes, cantora.
"Não ter Carnaval de rua mais um ano é muito triste por conta de todo o
ecossistema que ele sustenta. É uma cadeia muito grande de
profissionais, passando por catador de lata, hotelaria, comércio e
artistas. É muita perda financeira. Mas é necessário [em razão da
pandemia]. É quando a gente se mostra humano. O artista é essencialmente
humano. Ter empatia e a compreensão de que é um sacrifício pelo
coletivo dá uma sensação de que estamos nessa juntos. Não é sobre mim ou
sobre você. É sobre todos nós. Então, não ter Carnaval é uma maneira de
proteger muita gente. Estamos fazendo um sacrifício para que, no
futuro, a gente possa voltar a se abraçar e a carnavalizar." - Preta Gil, cantora.
"Não ter bloco é complicado. A gente quer estar na rua, ocupar o espaço público e se divertir. Os blocos trazem esse aspecto democrático da manifestação política, de estar ali com pessoas diferentes, de várias classes sociais. Não ter Carnaval de rua é bem triste não só para a gente, mas também para os ambulantes, que vão ficar sem vender. Em evento fechado não tem como. Eu não sou contra esses eventos, devo até tocar neles, mas o problema é que acaba acontecendo uma elitização do Carnaval. Vai quem tem dinheiro, quem tem grana." - Vitor Mazzeo, sociólogo e saxofonista de bloco.
"Passar o segundo ano sem o Carnaval de rua é muito difícil. A gente vive disso. Nessa época do ano, a gente já estava faturando alguma coisa, mas agora está bem difícil. Hoje mesmo, aqui na praia, eu não consegui arrumar R$ 20. Só de passagem, eu gasto para ir e vir R$ 30, ou seja, gasto mais do que faturo. Em quatro dias de bloco, eu voltava para casa com R$ 3.000, R$ 4.000. Sem os blocos vai ser bem difícil. Foi perda total para a gente. Com essa ausência dos blocos, dificulta não só a minha vida, mas a vida de mais de 3.000 camelôs. Chegar em casa sem renda e sem poder levar o filho a um parque de diversões é muito triste." - Douglas Cardoso de Carvalho, vendedor ambulante.
"A gente nunca imaginou que fosse ficar dois anos sem Carnaval de rua. A
gente está numa tristeza enorme. É uma sensação de que está faltando
alguma coisa, de uma ausência muito grande. Todo mundo brinca que o ano
só começa depois do Carnaval, porque, de fato, é um marco. É quando a
gente distensiona e vive aqueles dias todos com uma extrema alegria.
Passar dois anos sem isso tudo faz um mal danado para a nossa saúde
mental e para a nossa esperança. Eu espero que seja o último ano. Quando
o Carnaval de rua puder voltar, eu imagino que vai ser uma grande
catarse, um momento de muita alegria e de muito encontro. Vai entrar
para a história." - Rita Fernandes, presidente da Sebastiana, a associação de blocos de rua do Rio.
"É muito difícil falar sobre esse assunto para a gente que vive de
Carnaval e para o Carnaval. Praticamente nasci, fui criada no Carnaval,
minha mãe também foi cantora de Carnaval. Uma coisa inimaginável o que a
gente passou ano passado, foi difícil para caramba e nos levantamos e
nos preparamos esperando que chegasse o outro ano e esse outro ano
chegou e mais uma vez nos deparamos com a impossibilidade de fazer o que
a gente mais ama. Não podemos ir para ruas, palcos, trios,
infelizmente. Não é só financeiramente que é problemático para todos
nós, mas emocionalmente também, porque fica faltando um pedaço da gente,
que fica ali agoniado, angustiado, amortecido à força. E é muito
difícil. A gente não sabe o que descrever, mas aí a gente se enche de
esperança e tenta fazer um Carnaval diferente, da maneira que a gente
puder para não deixar que essa alegria do Carnaval se perca das pessoas e
de nós também, e se preparar para o próximo ano. Porque o Carnaval está
dentro da gente antes de tudo." - Nena Queiroga, cantora.
"Em 2022, iríamos para a décima quarta edição da exibição dos bonecos, que ocorre em períodos de Carnaval e de Copas do Mundo. Mesmo com a pandemia, permanecemos criando os novos bonecos. Então, a gente sempre tem estado atual. Não fomos muito afetados. Não vai haver esse Carnaval, mas acho que é um momento que a gente tem de ter mais tranquilidade para em 2023 voltar com a alegria de todos." - Leandro Castro, integrante da Embaixada dos Bonecos de Olinda.
"É uma situação atípica e triste. Para quem está acostumado com a
agitação, com todo o planejamento e toda a mobilização que a gente faz
para colocar o Galo da Madrugada na rua, é uma sensação de tristeza e
impotência. Nesse momento, a gente estaria no auge da agitação de todo o
processo e estar assim parado, sem fazer quase nada, é muito triste.
Realmente, é péssima essa sensação. Principalmente porque você não está
ligado com as uniões, com a realidade do povo, com o anseio que o povo
de querer brincar o Carnaval e não estamos podendo promover isso." - Rômulo Menezes, presidente do Galo da Madrugada.
"Desde o princípio da pandemia, eu e meus colegas mais próximos
respeitamos tudo que foi determinado pelo poder público. Conseguimos
tocar em alguns momentos no começo de 2021 e voltamos para casa quando
disseram que não dava mais. Eu não tenho conhecimento técnico para
rebater decisões sanitárias, mesmo agora quando parecem estranhas ou
contraditórias. O que eu realmente sei e posso dizer é o quanto os
profissionais ligados ao setor cultural são absolutamente preteridos
pelo poder público. Nisso aí você inclui não só artistas, mas
produtores, técnicos, roadies, chegando até quem faz a faxina dos
lugares onde a gente toca. Todos, salvo raríssimas exceções, foram
esquecidos e ainda estão no perrengue, muita gente abraçou outras
profissões no meio do caminho para sobreviver. O que eu mais penso é
como vai estar o cenário cultural quando a pandemia acabar de fato. Os
artistas grandes, esses estão garantidos, ganham bom dinheiro com
royalties, têm patrocínios, investimento de gravadora etc. E os artistas
médios e pequenos? Quem pensa neles?" - Thiago França músico e fundador do bloco A Espetacular Charanga do França.
"É realmente muito triste passarmos mais um ano sem o Carnaval, sem poder colocar o nosso bloco na rua. Mas diante do cenário de infecção nos dois primeiros meses do ano, o mais prudente foi mesmo o cancelamento. Esperamos desfilar tranquilamente e novamente ocupar as ruas em 2023. Como diz o nosso lema de 2022: Vai passar!" - Alê Natacci, presidente do Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta.
"Para o Ilú Obá De Min, é um segundo ano de um Carnaval de ausências. Ausência do bloco na rua, criando a mais tradicional Ópera Negra de tambores ancestrais tocados exclusivamente por mulheres, ausência de responsabilidade política na gestão de toda a pandemia até aqui e ausência de políticas de auxílio aos blocos de rua, que são o coração do Carnaval paulistano. O Ilú Obá de Min reconhece que o Carnaval é uma cultura negra. E de maioria de mulheres negras é composto o bloco e seu público. Por isso, em mais este ano, optamos por não colocar nossas integrantes e nosso público em risco. Reconhecemos também que a rua é o coração do Ilú Obá De Min, mas o bloco não é feito só de rua. Nossa instituição não paralisou suas atividades em nenhum momento, elaborando diversas ações de apoio às nossas integrantes e à comunidade, como distribuição de cestas básicas, auxílio financeiro e psicológico. Defendemos que somos parte importante do patrimônio cultural da cidade com um Carnaval grandioso, que atrai cerca de 50 mil pessoas e que nossos valores não combinam com um Carnaval privatizado que está se organizando pela cidade." - Daiane Pettine, coordenadora do bloco Ilú Obá de Min.